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 E em um momento, tudo teve algum início. O próprio universo não era dono de si — não se possuía — antes do primeiro átomo se formar. Antes, era tudo o nada. Aparentemente, essa era uma daquelas noites em que o tudo parecia andar cada vez mais em direção a esse fim.

 Eu a observo. Ela está deitada no interior de nossa barraca. Procuramos o melhor lugar possível, nossas condições: estar longe do frio e próximo das estrelas. Algo improvável, pensamos no primeiro instante, mas achamos uma caverna próxima do topo de uma pequena montanha neste deserto gélido.

 Eu observo o céu. Está iluminado. Raios de múltiplas cores sobrevoam a minha cabeça, e eu os aprecio com admiração. Apenas presenciei tais fenômenos há alguns anos atrás, quando ainda não dominava nenhuma das artes. Felizmente, continuo vivo para observar com tranquilidade essa maravilha.

 Aurora.

 Uma corrente de ar frio me penetra a espinha, estremeço um pouco. Procuro admirar mais o ambiente em que estou. Há diversas árvores, mas poucos pássaros. Seus galhos estão congelados, recheados por uma grossa camada de neve que se acumulará ainda mais com a forte geada que está por vir. Seus troncos estão ríspidos, maltratados pela ação do clima e da pouca — mas violenta — natureza que domina essa região. Uma grossa camada de neve também estufa o chão, tornando cada um de nossos passos ainda mais desafiadores. É perigoso andar sem prestar redobrada atenção. Nossa caverna está, neste momento, aquecida por uma delicada fogueira, que queima timidamente o pouco de madeira que encontramos ainda seca. Essa, só, ilumina ligeiramente as paredes desse buraco, onde sombras cinzas são projetadas na parede. Ela, por sua vez, está deitada. Eu não julgarei sua decisão, combinamos os horários de nossas rondas e assumi a maior parte do tempo para vigia. Foi a conclusão que chegamos após analisarmos nossos gastos de energia. Ela precisa de um pouco mais de descanso que eu.

 Visitando este lugar, eu não pude deixar de notar a semelhança que há em tudo aqui com nossa terra natal. Sair de casa talvez tenha sido uma má decisão. Abandonamos antigos familiares, vizinhos, amigos, parceiros, colegas. Mas, me diga, por que temos que tomar a melhor decisão sempre? Você toma decisões ruins, mesmo sabendo que elas são ruins, então qual a razão para eu não fazer o mesmo? Somos humanos, afinal. Queremos aquilo que queremos, fazemos aquilo pelo qual estamos com vontade de fazer. O que seria, então, a liberdade sem a integral possibilidade de escolha? Escolher errar talvez seja a maior prova de que somos livres, que podemos assumir as nossas próprias consequências.

 Escuto mais um estalo da fogueira. É por motivos assim que eu escolhi sair. O contato com as infinitas possibilidades que há em ser apenas mais um andarilho, isso talvez foi a principal razão pela qual eu e ela tomamos esse rumo como norte de nossas vidas.

 Ela se mexe um pouco dentro do pesado cobertor. Me aproximo e sento ao lado de seu rosto.

 Olhando assim, parece que nos damos bem, e talvez seja assim. Enfim, eu nunca consegui sistematizar nossa relação em palavras definidas. Talvez gostemos de provocar um ao outro, e ver até onde nossos limites podem ser testados.

 Mas somos felizes assim. É algo que eu prefiro deixar bem claro. Não éramos infelizes em nossa vida anterior, mas definitivamente queríamos buscar algo mais. A ganância pelo movimento fez com que saíssemos.

 O vento sopra com mais intensidade, anunciando a futura tempestade que virá com extrema força. Já não consigo mais apreciar tão bem o céu, pois esse já está coberto por uma leve, mas crescente, neblina.

 O vento não pode soprar na direção que quer. Ele se encarrega de balançar as folhas das árvores, de sacudir e derramar um pouco da neve que as cobre. Mas, é claro, sua força é sentida. Quase onipresente.

 Enfim, talvez eu deva deitar um pouco. A fogueira já está quase se apagando. Em breve ela vai acordar.

 Pude escolher. Essa foi a primeira coisa que pensei quando tomei esse rumo.

O Que CaminhaOnde histórias criam vida. Descubra agora