Há muito tempo eu não tenho sonhos.
Talvez pela falta de vontade, eu não pude apreciar os momentos em que deitava a cabeça no travesseiro. Vontade, você pergunta, é apenas a forma como eu prefiro relacionar certas emoções, aquelas que nos movem para frente. Talvez eu não sentisse a necessidade de parar e sonhar.
A razão também pode estar ligada no fato dos meus sonhos serem atípicos, ao menos nos últimos anos.
Era uma casa, grande e extensamente mobiliada. A poeira era visível pelos fracos raios de sol que penetravam preguiçosamente as frestas das janelas. Os móveis eram posicionados de forma que, ao ser o primeiro a chegar na casa, este conseguisse apreciar a paisagem como se estivesse encarando um retrato. Haviam quadros nas paredes, que são agora substituídos por mofos e uma densa sombra, que esconde o que antes era um papel parede rebuscado. Não era uma casa de gente simples. Podia-se dizer que os móveis eram feitos totalmente à maneira tradicional, talvez meses eram tomados para a construção de uma simples peça. Tudo era meticulosamente planejado, como tudo devia ser, como tudo sempre foi, conforme a dona dessa casa.
Uma mulher que possuía a delicadeza de posicionar os móveis logo onde a luz alcançava. O sol da manhã ofuscava a visão de quem sentasse na seguinte poltrona, com o propósito de acordar o triste e cansado morador, que trabalhava como vigilante do cemitério local. Essa vila, se é que pode ser considerada uma vila, não se parece com nada do que eu uma vez já vi em minha jornada até aqui. A casa, então, era posicionada bem no topo da colina oeste, em que as janelas ficavam viradas para o leste, onde o Sol batia. Onde o Sol batia.
Mas talvez meus sonhos descessem mais uma camada da minha consciência. Eles me fizeram enxergá-la. Ela, que está ao meu lado neste momento, enquanto eu durmo o meu sono, sua imagem refletida no fundo do meu crânio.
E o que mais seu rosto podia me dizer?
Estamos caminhando agora. O Sol amanheceu há algumas horas, iluminando nossa caverna e revelando nossa apagada fogueira. O que tínhamos de guardar, carregamos conosco. Partirmos em direção ao leste, a direção de onde o Sol vinha.
— Mas há uma inconsistência no que diz. Falaste que a casa era rebuscada, certamente pertencente a um abastado. Então qual a razão para a poeira? — Ela interrompe a vazão dos meus pensamentos, que fluíam como água para fora de minha cabeça.
— Quando você possui tudo, a estética perde valor. Outrem sabe que não é por falta de capital, mas sim por pura escolha. O problema não é a validação, mas sim a vontade do ser. Ao ser enfrentado com uma vontade bruta, nota-se que há a mínima valorização da estética, pois a necessidade de aprovação já é inexistente.
Continuamos nossa lenta caminhada, coisa que costumávamos fazer desde pequenos. Nós somos velhos conhecidos. Talvez nossos laços já foram marcados ao nascermos.
Mas isso é outra história.
Já ouviu falar no destino? Isso não existe aqui. Antes que você queira criar alguma hipótese a esse respeito, tenha em mente que nada retratado aqui foi determinado a acontecer. A escrita pode ser determinada, há um final para cada palavra, uma continuação para a próxima letra, mas a consciência pensante não possui nada concreto, determinado, que exista antes de acontecer. O que você define como existência é o aqui, é este exato momento, e talvez tenha sido isso que percebi ao conhecê-la.
— Aliás, recebi a carta dele. — Ela informa.
— Pensei que não estivesse mais preocupado conosco. — Respondo, fazendo um desvio para evitar um pouco da densa neve que formou com as tempestades recentes. Há um filete de água passando por aqui. O caminho que nos foi dito está certo.

VOCÊ ESTÁ LENDO
O Que Caminha
FantastikDois andarilhos abandonam suas vidas passadas em busca de suas próprias liberdade.