Um dia, o pai recebeu uma carta, do irmão lá do norte, dizendo que um filho dele (sobrinho do pai) ia vir pra São Paulo. Ele precisava trabalhar pra ajudar a família, e não conseguia emprego. E pedia pra ele morar lá em casa. O pai não gostava muito da idéia. Ouvi ele conversando com a mãe: --Que é que você acha, Carminda? Já temos cinco bocas aqui em casa pra sustentar, e a gora vem mais um moço que deve comer por dois....
- Ele vai trabalhar, não vai?- disse a mãe. - Então ajuda nas despesas. Pode dormir com os meninos....
O pai girou os olhos de um jeito engraçado:
- E tem a menina aí, a Taís. Tá ficando mocinha. Irmão e diferente, mais primo dentro de casa...
- Credo, José, que malícia! A Taís é quase uma menina. Imagine se o moço vai mexer com ela... É filho do seu irmão homem. E quase irmão dos meninos...
-É, não sei se posso negar isso pro meu mano - respondeu o pai, e foi dormir.
No dia seguinte escreveu pro tio dizendo que o primo podia vir. Mais que ficasse sabendo: a casa tinha muita disciplina. O rapaz não pensasse que estaria morando em pensão de moço, essas confusões.
Um mês depois o primo chegou. A gente foi buscar ele na rodoviária, se não ele nunca ia achar a nossa casa, num bairro tão distante de periferia.
Quando vi o Gelcimar, até levei um susto: ele parecia um galão de televisão, um gato. Como o nosso avô era o mesmo, o tal alemão, ele tinha olhos bem azuis e cabelos castanhos.
Ele pegou na minha mão e disse: - Oi, Taís, você é mais bonita que na fotografia.
- Ué, você tem fotografia minha? Perguntei, um friozinho correndo na minha boca do estômago. Até a minha boca estava seca.
- Claro que tenho, o tio mamdou- disse ele, e sorriu com os dentes bem bonitos. Tinha uma falta assim do lado direito, mas não atrapalhava nada, nadinha mesmo.
Enquanto a gente voltava pra casa, o Gelcimar olhava tudo, entusiasmado:
-Puxa, que cidade grande, seo! Nunca vi um mundaréo de carro desse jeito. E como tem gente na rua!
- Também, você veio de uma cidadica de nada - ria a mãe. - Dá pra conhecer todo mundo lá, não dá?
- Todo mundo - concordou o Gelcimar. - Lá todos sabem da vida dos outros: quem nasceu, morreu, fugiu...
- Fugiu? - Estranhei.
- É, fugiu - continuou o primo. - Às vezes, tem casal de namorado que foge...
- Que conversar mais boba- interrompeu o pai. - Como é que vai a cunhada, o mano?
- Mãinha tá boa, painho também - disse o primo.
- Mandam muitas lembranças. E um presente também. Uns doces, que a mãe faz, que são uma delícia... Se não derreteram pelo caminho... Tantos dias de estrada.
- Você deve tá cansado - disse a mãe. - Descansa bem esta noite pra procurar emprego amanhã.
Gelcimar sorria pra mim, e o meu coração disparava: bum-que-bum, bum-que-bum... Credo, eu tava ficando até tonta. Eu nunca tinha visto olhos tão bonitos daquele jeito: pareciam um céu aberto, sem nuvens...
A mãe e o pai, graças a Deus, entretidos em mostrar a cidade pro Gelcimar, nem perceberam. Os meus dois irmãos estavam no trabalho. A mãe tinha até faltado no serviço pra ir buscar o primo, a patroa deu folga pra ela.
Chegamos e Gelcimar disse que a casa era bonita.
Acho que por educação, porque é uma casa muito simples, pobre mesmo. Ele jantou, conversou um pouco, viu televisão... Depois deu boa-noite e foi dormir.
Me deu uma alegria! Uma coisa assim dentro do peito uma ansiedade, uma vontade de sair correndo... Contar pras amigas que o primo tinha chegado.
Mas era noite. Imagine se o pai ou a mãe iam deixar.
Fui dormir pra acordar bem cedo, e cheguei na escola cheia de mistérios:
- Você nem sabe da novidade...
-Saiu CD novo gatinho - disse a Miracê.
-Você ganhou na loteria - falou a Cejana, que só pensava em guardar dinheiro Pra poder fazer a faculdade de medicina.
-Emagreci dois quilos - anunciou a Deolinda, mais interessada nas próprias curvas, que fariam dela a maior top model do Brasil.
-Meu primo chegou - eu disse.
-Bela novidade! A Miracê fez um muxoxo. - Veio lá do norte, não é? Deve ser o maior caipirão...
- Com dois olhos azuis de matar - eu disse.
- Um gato? - Perguntou a Cejana.
-Um gatão -exagerei. - Mais lindo impossível.
- Puxa, a gente podia estudar um pouco na sua casa - propôs a Miracê. - A gente tá ruim pra burro em Matemática.
-Assim você vê o caipirão, né?
-É disse a Miracê, revirando os olhos.
Quando o Gelcimar saia pra procurar emprego, a casa ficava quieta, sem graça mesmo. O pai e a mãe fora, os meus irmãos no serviço, como sempre. Eu ia pra escola e voltava correndo... Então via a casa vazia, droga!
Mas, quando ele chegava, parecia que a casa ficava iluminada. Ele enchia a casa de alegria, de brincadeiras: -Corre, Taís, corre que eu te pego!
Eu saia correndo pelo quintal e me escondia atrás do pé de laranja-lima que a mãe tinha plantado fazia um tempão e numca que dava fruta.
-Te peguei!
Eu ria tanto que até engasgava. E aqueles olhos azuis sorrindo pra mim:
-Quantos anos você tem, Gelcimar?
-Vinte.
-Nossa, você é um moço. Eu é que sou criança ainda. Tenho só doze. -Mas já é bonita pra burro.
-Você acha mesmo?
-Claro que eu acho. A moça mais bonita que eu já vi na minha vida.
Quando ele me chamou de moça, fiquei meio mole de prazer. Sabe, meu diário, eu tinha ficado moça mesmo, fazia uns meses. Levei um susto: a mãe não tinha me explicado nada. Quando vi aquele sangue, abri o berreiro:
-Mãe, tô morrendo!...
A mãe reagiu na hora:
-Quieta menina, isso é coisa de mulher. Só uns dias e passa... Pega o pacote de absorvente lá em cima do armário que eu te ensino a usar...
-Mas, mãe, por quê?
-Ora, menina, vá buscar logo! Não carece muita pergunta, não...
Mas eu tinha tanta pergunta presa na garganta: "por que saia aquele sangue de mim?"; "por que era coisa de mulher?"; "por que acontecia aquilo?";
A mãe nem deu confiança. Voltou pra tanque cheio de roupa. O sonho dela era ter uma máquina de lavar roupa nunca que acontecia.
Então eu pus o absorvente como ela me ensinou. Ficou que nem bebê. E fui correndo contar pra Cejana, pra Deolinda e pra Miracê. A Cejana fez cara de importante.
-Eu já sou moça desde de o mês passado...
-Pô, cê, nem contou pra gente...
-Esqueci. Também não é coisa que a gente saia contando pra aí, né?
-A sua mãe falou com você? -Perguntei ansiosa.
-Mais ou menos - a Cejana fez mistério. -Disse que é coisa de mulher.
-Isso a minha mãe também disse - falei. -Mas eu quero saber por que a mulher tem dessas coisas...
-Ah, isso eu não sei,não -disse a Cejana.
-Bela médica que você vai dar - rebateu a Deolinda. -Duas burras, vocês. Isso é menstruação, a minha irmã me contou. Serve pra mulher ter bebês mais tarde.
- E como é que faz pra ter bebê? - A Miracê estava muito interessada. - Já ouvi tanta coisa que nem sei mais...
-Só beijo não é, tenho certeza - disse a Deolinda.
- Se não minha irmã tinha nenê todo dia. Do jeito que ela e o namorado se beijam, lá no portão de casa...
-A gente precisa descobrir isso direito - disse a Cejana. - Deixem comigo. Eu vou perguntar pra mãe.
-Será que ela conta? A minha mãe é uma concha, não tiro uma palavra dela - confessei.
-Vamos ver - a Cejana sempre foi muito misteriosa. - Eu posso tentar, né? Se descobrir, eu conto tudo!
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O portão do paraíso
RandomGiselda Laporta Nicolelis A gravidez infantil discutida com a força e a maturidade da franqueza. Taís é uma garota que leva a vida tranquila: de casa pra escola, Encontra com as amigas, passeios no shopping, coisas de adolescente. Gelcimar vem mor...