Naquele dia, 09 de junho de 1995, acordara irritado como sempre com o despertador e sinceramente nem sei mais porque, já que aquela era minha rotina matinal a pelo menos 06 meses, quando me mudei para Salamanca e ainda engatinhava como revisor de texto de um periódico da cidade.
Jamais suspeitaria eu, que a sequência de fatos que presenciaria a seguir, iriam me ajudar de uma maneira impar a reconstruir a minha visão de ser humano e de dignidade. Saí de casa apressado como de costume, quase atrasado, mas não podia começar a trabalhar sem tomar um bom café. Sendo assim, a minha primeira parada do dia, foi a primeira de todo dia. A aconchegante cafeteria do senhor Arnaldo, que ficava no térreo do prédio onde dois andares acima funcionava o periódico no qual eu trabalhava.
Ao adentrar na cafeteria, ouvi seu Arnaldo com um largo e franco sorriso me perguntar: Bom dia meu jovem. O que vai querer? O de sempre? Respondi a saudação e ao questionamento. Sim seu Arnaldo. O de sempre! Os seis meses frequentando o ambiente já me possibilitava encurtar todo o falatório na hora de pedir o que comer no café. Seu Arnaldo era um senhor de 64 anos, viúvo, gordo, cabelos branqueados, segundo ele, resultado não só do tempo, mas também do trabalho cansativo de longos anos.
Enquanto lia, meio que orgulhoso, as matérias que eu mesmo revisara um dia antes de chegar nas bancas, percebi um rapaz entrando na cafeteria e se dirigindo ao senhor, com uma pasta não mão. Educado, perguntou-lhe pela vaga de garçom que o anuncio fixado na parede frontal do estabelecimento, afirmava ser uma necessidade. Seu Arnaldo de pronto lhes disse: Sinto muito. A vaga já está preenchida. Imediatamente deu as costas ao rapaz e posicionou-se atrás do balcão, como se estivesse se resguardando, se protegendo de algo. O meu contato, diário com leitura, escrita, entrevistados, entrevistadores...me propiciara uma certa habilidade de reconhecer a essência das expressões humanas. Percebi naquele sinto muito! Proferido por seu Arnaldo, não o sentido real da expressão, mas sim, dissimulação imersa em um desprezo, difícil de não se notar em seus olhos.
Aquela minha percepção, junto ao ar de tristeza no rosto daquele jovem ao deixar o ambiente, me deixou perturbado, angustiado e torcendo para estar equivocado em minha análise. Aquele senhor, conversador, bondoso, generoso, não podia carregar em seu peito sentimentos tão adversos. A minha inquietude foi tamanha, que não me contive e chamei-o a minha mesa. Ele aproximou-se, paguei a conta e lhe perguntei aquilo que estava preso feito nó, na minha garganta: Seu Arnaldo, hoje mesmo ouvi o senhor comentando que necessitava muito de um garçom. O que houve para descartar os serviços daquele moço? O senhor o conhece?
Ele me respondeu: Não. Realmente não o conheço, nem preciso, nem pretendo. Viu seus trajes? Sua cor? Necessito sim e com urgência, de um garçom. Eu não preciso é de um pobre e ainda por cima negro trabalhando em minha cafeteria.
Por essa eu não esperava. Nem esperava também que ia partilhar a audição daquela resposta, racista e preconceituosa com o mesmo jovem que acabara de sair dali. Ele havia entrado novamente no estabelecimento para pegar sua pasta que havia esquecido em cima de uma das mesas e ouviu absolutamente tudo. Por alguns segundos ficamos estáticos os três, olhando sem palavras um para o outro. O rapaz rapidamente deixou o local, em seguida, sem dizer uma palavra, fiz o mesmo. Antes de subir a escadaria e me dirigi ao meu posto de trabalho, alcancei o jovem, sentado na calçada, sinceramente me faltava palavras para lhes dizer qualquer coisa, e quando percebi que já estava entre soluços, apenas o abracei forte. Antes de nos despedir, ele se recompôs e se apresentou. Seu nome era Greg e apesar do estrangeirismo no nome, era brasileiro, de origem humilde, fascinado pelo mundo da culinária e procurando emprego. Então fui trabalhar, tentar pelo menos, perplexo, e confesso desiludido demais com o ser humano.
Os anos foram se passando, não tinha mais notícias de Greg, continuei a frequentar a cafeteria de seu Arnaldo, já sem nenhuma empatia, mas meio que obrigado, já que o periódico para qual eu trabalhava nunca mudou de endereço. E todo dia, ao entrar naquele local, era como se estivesse revivendo aquela cena e ouvindo novamente os soluços de Greg. Era definitivamente perturbador.
Com o passar do tempo, passei a acompanhar de perto e presenciar um drama vivido por seu Arnaldo. Tendo que cuidar de sérios problemas de saúde e cada vez mais debilitado, com quase 80 anos, afundou num mar de dividas que o brigara agora a se desfazer do seu único patrimônio. A Salamanca Café. Mal colocou o anuncio de venda da cafeteria nos jornais, seu Arnaldo recebeu a visita de um representante de uma grande rede de lanchonetes e restaurantes, interessado em comprar o estabelecimento, lhe oferecendo inclusive um valor acima do que era pedido no anuncio. Sem muito tempo para pensar, ele aceitou de imediato a proposta e concretizou o negócio, entregando ao negociador a escritura da cafeteria e recebendo o cheque com o valor que certamente iria lhe ajudar na reabilitação de sua saúde. O homem ao sair dali, informou a seu Arnaldo que o próprio dono viria na manhã seguinte conhecer o espaço e tratar de prováveis mudanças no funcionamento.
No outro dia logo cedo, lá estava eu, sentado à mesa de costume, comendo e bebendo o de costume, quando um automóvel daqueles que devem valer uma fortuna, parou em frente a cafeteria e ao ver quem descera dele, bem trajado, com seguranças, e uma pasta executiva debaixo do braço, fiquei pasmo e ao mesmo tempo quase pulei de alegria. Era Greg. Havia estudado, se formado no ramo que sempre sonhou e agora era dono de uma das mais ricas redes de restaurantes do país. A surpresa foi tão grande, que tenho quase certeza, que nem seu Arnaldo, nem eu, suspeitamos na hora do que se tratava. Greg, se dirigiu soberano e calmo ao senhor que anos atrás o humilhara com uma ferocidade cruel e disse: Bom dia seu Arnaldo, bom rever o senhor. A resposta de seu Arnaldo não foi ao bom dia. Os repetidos pedidos de perdão do velho, trazia com muita intensidade aquela cena de anos atrás e fazia dela novamente tão real. Greg, sereno, o interrompeu: Calma seu Arnaldo! Cuidado com o coração. A minha vinda aqui não foi para me vingar do senhor. Foi para lhe provar o contrário. Voltei aqui na condição de dono deste espaço. Sim eu comprei a cafeteria! Voltei para dizer ao senhor que rancor, preconceito, ódio, levam o homem a ruína. Dizer que a vingança nunca é plena! Não se pode pagar o mal, fazendo o mal. Rancor só gera rancor. Eu estava deslumbrado com as palavras daquele homem, quando ele se virou na mira direção e disse: seu abraço meu jovem, naquele dia, somado ao não que recebi deste senhor, foi a injeção de ânimo que eu talvez estivesse precisando para reforçar a minha fé na vida e em mim mesmo. Lutei, venci, e hoje seu Arnaldo estou aqui para lhes dizer que o valor pago pela compra do estabelecimento é do senhor, assim como a cafeteria também! Estou vos entregando a mesma de presente em forma de gratidão por aquela rejeição que fez nascer em mim, o vencedor que hoje eu sou. Greg deixou o local rapidamente. Seu Arnaldo enxugando as lágrimas que mesclavam alegria e arrependimento, se dirigiu a mm e me pediu que escrevesse em um lenço de papel apenas uma coisa: "Hoje a vida me deu a oportunidade de renascer. Mais humilde, mais justo, mais homem! "
Depois disso saí, fui trabalhar e no periódico recebi a notícia que nos mudaríamos para Oviedo uma semana depois! Nunca mais tive notícias de Seu Arnaldo, de Greg menos ainda, mas de uma coisa eu tenho certeza: Da importância que teve na remoldura da minha concepção de mundo e de homem, aqueles momentos que os dois me possibilitaram presenciar.
Deusimar Oliveira.
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A vingança nunca é plena
NouvellesA vingança nunca é plena, traz para o leitor, importantes lições de sabedoria, humildade, luta contra o preconceito racial e de classes sociais. É na minha opinião uma linda historia que vale apena ser lida.