Desertor

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Os olhos achocolatados abriram-se lentamente para encarar o teto acinzentado do cômodo. O silêncio da manhã era barulhento, mas não o suficiente para ser o motivo de seu despertar. A verdade é que  Selena Gomez conseguia contar nos dedos quantas vezes tivera uma noite boa de sono desde que a caçula partiu.

Aquela espantosamente havia sido uma delas.

Na noite anterior, ela colocou as meninas na cama cedo, uma decisão consciente e adequada a um fim de domingo. Ao chegar em sua suíte, tentou clarear seus pensamentos no banho, mas não conseguiu. Era uma situação que se repetia, suas ideias continuavam confusas e ela não encontrava a paz que buscava. A batalha interna persistia, deixando-a inquieta e presa em seus próprios pensamentos tumultuados.

Ao aceitar sua derrota, Gomez notou que faltavam apenas alguns minutos para as onze da noite. Decidindo deixar de lado a frustração, ela vestiu um moletom qualquer e pegou seu notebook de trabalho. Sentada, começou a rascunhar algumas páginas daquela que havia sido sua mais recente façanha jornalística: uma breve entrevista realizada há alguns meses, com quem agora, era um dos concorrentes a governador da cidade.

Selena sempre foi o tipo de mulher que se orgulhava de sua profissão. Amava a adrenalina que corria em suas veias quando conseguia um furo. Sempre se considerou um tipo de masestrina: checar informações, fontes confidenciais, veracidade de relatos, e depoimentos...

Tudo parecia-se como uma grande orquestra sinfônica a qual ela era a responsável.

Era.

Após o funeral de Crystal, tudo mudou. A posição de destaque que ocupava desapareceu e, de repente, parecia que todos os músicos estavam tocando uma partitura diferente. A palavra "chefe", que antes era um título que precedia seu cargo de redatora, agora era apenas uma formalidade vazia. Na prática, Gomez havia sido rebaixada à condição de subordinada. No entanto, o problema não residia apenas na mudança de status. O verdadeiro dilema era o fato de agora ser  responsável por cobrir a corrida política em andamento no estado. Para ela, todo aquele mundo parecia excessivamente ensaiado, carente de vida e desprovido da emoção que ela ansiava.

Mas ela não podia culpar ninguém além de seu próprio luto. Foi Selly quem disse à sua superior que precisava de um tempo em casa, um tempo com a própria família. Bell não pensou duas vezes antes de solicitar o home-office daquela que era seu braço direito, mas Selena deveria ter imaginado que coordenar uma redação jornalística à distância nunca daria certo.

No final, o tiro saiu pela culatra e tudo o que Gomez conseguiu ficando em casa, foi ter algumas horas à mais do dia para ser assombrada pelas lembranças de Crystal.

Trabalhar era o que vinha lhe salvando, e o notebook depositado no espaço vazio da cama, era o sinal que havia tido uma boa noite de sono. Talvez a melhor que tivera nos últimos meses.

Cinco gloriosas horas.

Mesmo que ainda estivesse fisicamente cansada, a mente já estava à postos e disposta para um novo dia. Esse foi o único incentivo que teve para levantar-se da cama. Organizou-a do melhor jeito que pôde, retirando o notebook de lá, e voltando a depositá-lo sobre a mesa que mantinha em frente a janela.

Sobre o móvel estava um papel rabiscado com letras legíveis:

"Chester Lake - 175-555-895 "

Como se estivesse presa em um lapso temporal entre passado e presente, a mente de Gomez vacilou, levando-o de volta à tarde em que interceptou Demetria no gramado frente à sua residência.

Ela recordou o som ágil de suas botas ressoando no asfalto como um ritmo persistente, até se mesclarem com o leve toque amortecido da grama ressecada sob seus pés. Os rebeldes fios escuros do cabelo de Demetria dançavam ao suave aceno da brisa, capturando sua atenção.

Witness Elimination (SEMI)Onde histórias criam vida. Descubra agora