O Golpe Final

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Quando acordou no hospital, Matteo estava ao seu lado. Por sorte, fora ele quem atendera ao telefonema do hospital, enquanto Valentina dormia, e ele a poupara da notícia. Queria saber primeiro como Micaela estava.

Foi a notícia do desastre que acometera seu rosto que a fez pela primeira vez questionar o preço daquela sorte maldita que encontraram.

Uma cirurgia plástica poderia, talvez, diminuir o estrago, mas não o repararia totalmente. Especialmente o dano causado ao seu olho esquerdo.

As faixas em seu rosto a impediam de tomar conhecimento da real gravidade de seus ferimentos, mas sob a bandagem, ela sentia uma dor estranha na pele que envolvia o olho que estava coberto.

Foi só na primeira troca de curativos que os médicos revelaram a terrível verdade: aquele olho havia estourado contra o asfalto. Tivera que ser removido.

Nenhum choque poderia ter sido tão cruel e pesado quanto este. Se ela tivesse perdido qualquer outro membro de seu corpo não teria desmoronado tão completamente quanto diante desta perda.

Então ela se lembrou da manhã em que testemunharam pela primeira vez o milagre do Jarro da Fortuna; quando ainda se recusavam a acreditar que aquele objeto pudesse ter tamanho poder.

Valentina havia pesquisado a respeito daquele artefato, e da deusa cujo nome, e provavelmente, a magia ele carregava. A pesquisa não resultara em nada. Havia pouquíssimas informações na internet a respeito da deusa Fortuna, e absolutamente nenhuma a respeito de um Jarro ou qualquer outro objeto que ela tivesse abençoado. A pesquisa por imagem também não encontrara nenhuma outra fotografia ou gravura do Jarro. Se aquela era uma relíquia sagrada de algum de seus templos, ninguém no cyberespaço tinha qualquer conhecimento disso.

Sua única esperança era inquirir da própria vendedora uma explicação.

Assim que recebeu alta do hospital, Micaela retornou ao antiquário. A vendedora não pareceu surpresa ao vê-la naquele estado, com o rosto cheio de pontos, cicatrizes e queloides, e com óculos escuros enormes escondendo seu único olho restante.

– O que é aquela coisa que você me vendeu? – Micaela perguntou, sem se preocupar se tinha sido ou não reconhecida. Algo nos olhos da mulher lhe dizia que fora.

– Eu lhe disse quando o vendi. E avisei sobre as consequências.

– Você só disse que ela era traiçoeira. Não disse que tentaria nos destruir.

– E o que acha que essa palavra significa?

A vendedora mostrou uma moeda de ouro antiquíssima. Numa das faces via-se um timão, semelhante ao que estampava a cerâmica do Jarro. Na outra, a figura de uma mulher com os olhos vendados.

– Fortuna – explicou. – Deusa romana do acaso, da sorte – boa ou má –, do destino e da esperança. Ela distribui seus desígnios aleatoriamente; mas recebê-los requer sabedoria. A balança da sorte precisa ser equilibrada. Por isso a Fortuna dá com uma mão... E tira com a outra.

– Ela não está apenas tirando – disse Micaela, a voz embargada. – Está nos matando.

– O Jarro testa seus portadores. Cada vez que ele concede seu milagre, toma algo que lhes seja caro. Até que todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para aplacar sua miséria. Quando você cede à ambição, o Jarro cobra seu preço. E cobra caro. Em todos os lugares por onde passou ao longo dos séculos, a todos que o possuíram, o Jarro causou dor, devastação e catástrofes, pois nenhum ser humano foi capaz de resistir à tentação. O tilintar do ouro é sedutor demais; sobrepõe qualquer medo, qualquer aviso. Se você se permitir cegar pela ambição... – Ela estendeu a mão e removeu cuidadosamente os óculos escuros do rosto de Micaela, encarando sua órbita vazia sob a bandagem. – A ambição a cegará de volta.

O estômago de Micaela afundou, compreendendo quão literalmente o provérbio da sorte se manifestara sobre ela.

– O que eu posso fazer para me livrar disso? – indagou.

– Acho que você sabe a resposta.

***

Quando Micaela adentrou o apartamento, a determinação havia se fixado como concreto em seu espírito. Só havia uma forma de fazer aquele pesadelo terminar, e impedir que outra pessoa sucumbisse diante dele: o Jarro da Fortuna precisava ser destruído.

Foi direto para o quarto. As moedas não trocadas estavam guardadas em caixas embaixo da cama. Micaela teve vontade de queimá-las. Aquele dinheiro fora sua perdição. Mas não seria a de mais ninguém.

Pegou o Jarro da Fortuna. Achara-o tão bonito quando o vira pela primeira vez no antiquário, mas agora ele possuía um brilho maligno e repulsivo que somente a fazia desejar uma coisa: quebrá-lo.

Ergueu-o sobre a cabeça, e cingindo-se de toda a força que possuía, jogou os braços para frente.

Mas Valentina atirou-se contra a amiga, impedindo que o espatifasse. As duas se engalfinharam pelo quarto, cada uma tentando se apoderar do Jarro com todas as forças.

– Esse maldito Jarro foi responsável por todas as desgraças que nos aconteceram – estrilou Micaela. – Ele precisa ser destruído!

– Vai ter que me matar primeiro!

– Largue-o!

Micaela nunca soube como aquilo realmente aconteceu. Durante dias, quis acreditar que não viu o que estava fazendo; que a unha de Valentina cravara-se em seu olho restante antes que ela notasse a janela atrás da amiga; que quando dera o empurrão fatal, o globo ocular já havia rolado para fora de sua órbita. Quis acreditar que naquele momento já estava completamente cega. Que não fora responsável pela morte da amiga.

A última coisa que ela ouvira foi o grito de Valentina ao despencar do quarto andar.

E enquanto a dor de seu segundo olho arrancado a fazia perder os sentidos, ela quis acreditar ter ouvido o som definitivo da cerâmica se quebrando.


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O Jarro da FortunaOnde histórias criam vida. Descubra agora