NAQUELA MANHÃ, ao passear em sonhos novamente, Ferrugem voltou a ver o camundongo, ainda mais vívido do que antes. Livre da coleira, sob a lua, ele perseguia a tímida criatura. Mas, dessa vez, sabia que estava sendo observado. Brilhando no meio das sombras da floresta, via dezenas de olhos amarelos. Os gatos do clã tinham entrado no mundo dos seus sonhos.
Ferrugem acordou, piscando sob o sol brilhante que banhava o chão da cozinha. Por causa do calor, seu pelo parecia pesado e espesso. Uma das tigelas estava cheia de comida; a outra tinha sido lavada e continha um líquido amargo. Água dos Duas-Pernas. Ferrugem preferia beber das poças da rua, mas quando estava quente ou ele sentia muita sede, tinha de admitir que era mais fácil beber a água de casa. Será que conseguiria abandonar essa vida confortável?
Comeu e atravessou a portinhola que dava no jardim. O dia prometia ser quente, e o aroma dos primeiros botões se espalhava pelo jardim.
- Olá, Ferrugem - um gato miou da cerca. Era Borrão. - Você devia ter acordado uma hora atrás. Os filhotes de pardal estavam aqui fora, alongando as asas.
- Você pegou algum? - Ferrugem perguntou.
Borrão bocejou e lambeu o nariz. - Não quis me dar ao trabalho. Já comi bastante em casa. Por que demorou a sair? Ontem estava se queixando que Henry perde tempo dormindo e hoje você fez igualzinho a ele.
Ferrugem sentou na terra fresca ao lado da cerca e enrolou a cauda caprichosamente sobre as patas dianteiras. - Na noite passada estive na floresta - lembrou ao amigo. Imediatamente, sentiu o sangue ferver nas veias e o pelo se eriçar.
Do alto da cerca, Borrão arregalou os olhos. - Claro, tinha me esquecido!
Como foi? Pegou alguma coisa? Ou alguma coisa pegou você?
Ferrugem fez uma pausa, sem saber direito como contar ao velho companheiro o que tinha acontecido. - Conheci alguns gatos selvagens - começou.
- O quê? - Borrão estava claramente perturbado. - Você se meteu numa briga?
- Mais ou menos. - Ferrugem sentiu o corpo vibrar, ao se lembrar da força e do poder dos gatos do clã.
- Você foi ferido? O que aconteceu? - Borrão perguntou, ansioso.
- Eles eram três. Maiores e mais fortes do que qualquer um de nós.
- Você lutou com os três!? - Borrão interrompeu, balançando a cauda de tanta empolgação.
- Não! - Ferrugem miou depressa. - Só com o mais novo; os outros dois apareceram depois.
- E não fizeram picadinho de você?
- Só me advertiram para sair do território deles. Mas então... - Ferrugem hesitou.
- O quê? - Borrão miou com impaciência.
- Me convidaram para fazer parte do clã.
Os bigodes de Borrão tremeram, num gesto de descrença.
- Convidaram, sim! - Ferrugem insistiu.
- Por que fariam isso?
- Não sei - Ferrugem admitiu. - Acho que precisam de patas extras no clã.
- Acho meio esquisito - Borrão duvidou. - Se eu fosse você, não acreditaria neles.
Ferrugem olhou para Borrão. Seu amigo preto e branco nunca mostrara nenhum interesse em se aventurar na floresta. Estava bem contente vivendo numa casa, com humanos. Jamais entenderia os desejos inquietantes que os sonhos de Ferrugem nele provocavam, noite após noite.
- Mas confio neles - Ferrugem ronronou gentilmente. - E já me decidi.
Vou me juntar ao clã.
Borrão desceu correndo da cerca e se colocou na frente do amigo. - Por favor, não vá, Ferrugem - miou, assustado. - Pode ser que nunca mais veja você de novo.
Ferrugem afagou-o afetuosamente com a cabeça. - Não se preocupe. O
pessoal da minha casa vai arrumar outro gato e você vai se dar bem com ele. Você se dá bem com todo o mundo!
- Mas não vai ser a mesma coisa - Borrão lamentou.
Ferrugem balançou a cauda, impaciente. - Esse é o problema. Se eu ficar por aqui, eles vão me levar ao Corta-Gato e eu também não vou ser mais o mesmo.
Borrão se mostrou confuso. - O Corta-Gato? - repetiu.
- O veterinário - Ferrugem explicou. - Para ser modificado, como Henry foi.
Borrão deu de ombros e abaixou os olhos na direção das patas. - Mas Henry está bem - murmurou. - Quer dizer, está um pouco mais preguiçoso agora, mas não está infeliz. Ainda podemos nos divertir.
Ferrugem ficou com o coração cheio de tristeza ao pensar em deixar o amigo. - Sinto muito, Borrão. Vou sentir sua falta, mas tenho de ir.
Borrão não respondeu. Deu um passo à frente e, com delicadeza, roçou o nariz de Ferrugem com o seu. - Está bem. Sei que não posso impedi-lo, mas, ao menos, vamos passar mais uma manhã juntos.
Ferrugem aproveitou aquela manhã ainda mais do que de costume, visitando antigos refúgios com Borrão, conversando com os gatos com que crescera. Seus sentidos estavam todos aguçados, como se ele estivesse se preparando para dar um grande salto. Quando o sol estava quase a pino, Ferrugem já mal podia esperar para ver se Coração de Leão estaria mesmo aguardando por ele. O zumbido preguiçoso do miado de seus velhos amigos parecia ficar cada vez mais ao longe, à medida que todos os seus sentidos o puxavam para a floresta.
Ferrugem pulou da cerca do jardim pela última vez e entrou furtivamente na floresta. Tinha se despedido de Borrão e agora todos os seus pensamentos estavam concentrados na floresta e nos gatos que nela moravam.
Ao se aproximar do lugar onde se encontrara com os gatos do clã na véspera, sentou e saboreou o ar. Árvores altas protegiam o chão do sol do meio-dia, deixando-o agradavelmente fresco. Aqui e ali o sol brilhava através de uma fresta nas folhas, iluminando a superfície da floresta.
Ferrugem sentiu o mesmo cheiro de gato da noite anterior, mas não tinha ideia se era um cheiro novo ou antigo. Levantou a cabeça e farejou, sem muita certeza.
- Você tem muito a aprender - miou uma voz grave. - Até o menor filhote do clã sabe quando outro gato está por perto.
Ferrugem viu um par de olhos verdes brilhando debaixo de uma amoreira. Agora reconhecia o cheiro: era Coração de Leão.
- Você sabe dizer se estou sozinho? - perguntou o gato dourado, colocando-se na luz.
Ferrugem imediatamente se pôs a farejar de novo. Os odores de Estrela Azul e de Pata Cinzenta ainda estavam ali, mas não tão fortes como na véspera. Hesitante, miou: - Estrela Azul e Pata Cinzenta desta vez não estão com você.
- Está certo - miou Coração de Leão. - Mas tenho outra companhia.
Ferrugem paralisou-se quando um segundo gato do clã entrou na clareira.
- É Nevasca - ronronou Coração de Leão. - Um dos guerreiros antigos do Clã do Trovão.
Ferrugem olhou para o gato e sentiu a espinha formigar de medo. Seria uma armadilha? De corpo comprido e robusto, Nevasca parou diante de Ferrugem e fitou-o de cima. A pelagem branca era espessa e imaculada, e os olhos eram amarelos como areia queimada de sol. Ferrugem, prudente, abaixou as orelhas e tensionou os músculos, preparando-se para lutar.
- Relaxe antes que o seu cheiro de medo atraia alguma atenção indesejável - grunhiu Coração de Leão. - Estamos aqui apenas para levá-lo ao nosso acampamento.
Ferrugem sentou bem quietinho, mal ousando respirar, enquanto Nevasca espichava o nariz para farejá-lo, curioso.
- Olá, meu jovem - miou o gato branco. - Já me falaram muito de você.
Ferrugem abaixou a cabeça, cumprimentando-o.
- Venha, poderemos conversar mais quando estivermos no acampamento - ordenou Coração de Leão que, ato contínuo, pulou com Nevasca rumo à vegetação. Ferrugem pulou também, seguindo-os tão depressa quanto pôde.
Sem esperar por Ferrugem, os dois guerreiros dispararam pela floresta e ele logo se viu com dificuldade para acompanhá-los. Não retardaram a marcha nem mesmo ao conduzi-lo por cima das árvores caídas, que saltaram com um simples pulo, enquanto ele teve de escalá-las pata por pata. Passaram no meio de pinheiros de aroma penetrante, onde tiveram de pular valas profundas abertas pelo comedor de árvores dos Duas-Pernas.
Sentado em segurança na cerca do jardim, Ferrugem o ouvira muitas vezes, urrando e roncando a distância. Uma das valas, larga demais para saltar, com água lodosa e fétida, estava cheia até a metade. Os gatos do clã mergulharam e passaram por ela sem titubear.
Ferrugem, até então, jamais pusera uma pata na água. Mas estava decidido a não mostrar nenhum sinal de fraqueza; por isso estreitou os olhos e seguiu adiante, tentando ignorar a umidade incômoda que lhe ensopava o pelo da barriga.
Finalmente, Coração de Leão e Nevasca pararam. Ferrugem estacou bruscamente atrás deles e ali ficou, arfando, enquanto os guerreiros subiam numa pedra à beira de uma pequena ravina.
- Estamos bem perto do nosso acampamento agora - miou Coração de Leão.
Ferrugem se esforçou para ver algum sinal de vida - folhas se mexendo, um vislumbre de pelo entre os arbustos abaixo -, mas só conseguiu avistar a mesma vegetação que cobria o resto do chão da floresta.
- Use o nariz. Não é possível que você não esteja sentindo o cheiro - sibilou Nevasca, impaciente.
Ferrugem fechou os olhos e farejou. Nevasca estava certo. Os aromas eram muito diferentes do cheiro de gato a que estava acostumado. O odor era mais pesado, indicando muitos, muitos gatos diferentes.
Balançou a cabeça, pensativo, e anunciou. - Sinto cheiro de gatos.
Coração de Leão e Nevasca trocaram olhares divertidos.
- Vai chegar uma hora, caso se integre ao clã, em que vai conhecer cada cheiro de gato pelo nome - Coração de Leão miou. - Siga-me! - Ágil, colocou-se à frente dos demais e desceu pelas pedras para o fundo da ravina, abrindo caminho entre os tojos. Ferrugem seguiu atrás dele, com Nevasca na retaguarda. Ao atravessar os tojos pontiagudos, que lhe arranhavam os flancos, Ferrugem olhou para baixo e notou que a grama sob suas patas estava achatada, formando uma trilha larga e de cheiro forte. Deve ser a entrada principal do acampamento, pensou.
Além dos tojos, abria-se uma clareira. No meio, o chão era duro e sem vegetação, marcado por muitas gerações de solas de patas. Fazia muito tempo que o acampamento existia. A luz do sol inundava a clareira, e o ar era quente e parado.
Ferrugem observou ao redor, de olhos esbugalhados. Havia gatos por toda parte, sentados sozinhos ou em grupo, dividindo comida ou ronronando calmamente enquanto penteavam uns aos outros.
- Logo depois do sol alto, quando o dia está mais quente, é hora de trocar lambidas - Coração de Leão explicou.
- Trocar lambidas? - Ferrugem repetiu.
- Os gatos dos clãs sempre passam um tempo penteando uns aos outros e conversando sobre as novidades do dia - disse Nevasca. - Chamamos esse hábito de "trocar lambidas". É um costume que une os membros do clã.
Era evidente que os felinos tinham sentido o odor forasteiro de Ferrugem, pois as cabeças começaram a voltar-se, curiosas, na sua direção.
Com repentina vergonha de encarar diretamente qualquer um dos gatos, Ferrugem olhou à volta da clareira. Era rodeada de grama espessa, pontilhada com tocos de árvores e uma árvore caída. Uma grossa cortina de samambaias e tojos protegia o acampamento do resto da floresta.
- Ali - miou Coração de Leão, agitando a cauda na direção de um emaranhado de amoreiras, que parecia impenetrável - é o berçário, onde se cuida dos filhotes.
Ferrugem girou as orelhas na direção dos arbustos. Não conseguia enxergar através do nó de galhos pontudos, mas ouviu o miado de diversos filhotes que vinha lá de dentro. Enquanto observava, uma gata avermelhada surgiu contorcendo-se por uma pequena fenda. Esta deve seruma das rainhas, Ferrugem pensou.
Uma rainha malhada, com manchas negras bem definidas, apareceu perto da amoreira. As duas gatas trocaram uma lambida amigável entre as orelhas antes que a malhada entrasse no berçário, falando baixinho com os filhotes chorões.
- Todas as rainhas ajudam a cuidar dos filhotes - miou Coração de Leão.
- Todos os gatos servem ao clã. A lealdade ao clã é a primeira lei do nosso Código dos Guerreiros, uma lição que você precisa logo aprender se quiser ficar conosco.
- Aí vem Estrela Azul - miou Nevasca, farejando o ar.
Ferrugem também farejou o ar e ficou satisfeito ao perceber que fora capaz de reconhecer o cheiro da gata cinzenta um instante antes de ela sair da sombra de uma grande rocha ao lado deles, na entrada da clareira.
- Ele veio - Estrela Azul ronronou, dirigindo-se aos guerreiros.
Nevasca replicou: - Coração de Leão tinha certeza de que não viria.
Ferrugem notou que a ponta da cauda de Estrela Azul estremecia com impaciência.
- E então? O que acham dele? - a gata perguntou.
- Aguentou bem a viagem de volta, apesar de ser um gato pequeno - Nevasca admitiu. - Parece forte para um gatinho de gente.
- Então está aceito? - Estrela Azul perguntou, dirigindo-se a Coração de Leão e a Nevasca.
Os gatos aprovaram com a cabeça.
- Sendo assim, vou anunciar ao clã sua chegada - disse Estrela Azul, pulando para a pedra e uivando. - Que todos os gatos com idade suficiente para caçar a própria presa compareçam a uma reunião do clã, aqui sob a Pedra Grande.
Ao ouvirem o chamado alto e claro, todos os gatos se dirigiram até Estrela Azul, como sombras líquidas surgidas das laterais da clareira.
Ferrugem ficou onde estava, entre Coração de Leão e Nevasca. Os outros felinos se instalaram sob a Pedra Grande, olhando curiosos para a líder.
Ferrugem sentiu um certo alívio ao reconhecer o pelo farto e cinza de Pata Cinzenta entre os gatos. Ao lado dele estava uma jovem rainha atartarugada, com a cauda de ponta negra jeitosamente pousada sobre as pequenas patas brancas. Um gato grande, de pelo cinza malhado, agachou atrás deles; as listas pretas de seu pelo pareciam sombras num chão de floresta banhado pela lua.
Quando os gatos ficaram quietos, Estrela Azul falou: - O Clã do Trovão precisa de mais guerreiros. Nunca antes tivemos tão poucos aprendizes em treinamento como agora. Foi decidido que o Clã do Trovão vai admitir alguém de fora para ser treinado como guerreiro...
Ferrugem ouviu murmúrios indignados surgirem em meio ao clã, mas Estrela Azul silenciou-os com um uivo firme. - Encontrei um gato que deseja se tornar aprendiz do Clã do Trovão.
- Sorte dele tornar-se um aprendiz - guinchou uma voz alta acima da onda de espanto que se espalhou entre os gatos.
Ferrugem ergueu o pescoço e viu um gato malhado e desbotado que se levantara e encarava a líder de maneira desafiadora.
Estrela Azul o ignorou e se dirigiu a todo o clã: - Coração de Leão e Nevasca conheceram esse jovem gato e concordam comigo que devemos treiná-lo junto com os demais aprendizes.
Ferrugem olhou para Coração de Leão e, mais uma vez, fitou os gatos do clã, encontrando todos os olhos grudados nele. Seu pelo se crispou e ele, nervoso, engoliu em seco. Por um instante se fez silêncio. Ferrugem não teve dúvidas de que todos podiam ouvir seu coração pulsar e perceber seu cheiro de medo.
Uivos ensurdecedores começaram então a brotar da multidão.
- De onde ele vem?
- A que clã pertence?
- Ele tem um cheiro esquisito! Não é o cheiro de nenhum clã que eu conheça!
Um guincho em especial se sobressaiu: - Vejam a coleira dele! É um gatinho de gente. - Era de novo o gato desbotado. - Uma vez gatinho de gente, sempre gatinho de gente. Este clã precisa de guerreiros nascidos na floresta para defendê-lo, e não de outra boca delicada para alimentar.
Coração de Leão se inclinou e cochichou na orelha de Ferrugem: - Esse gato se chama Rabo Longo. Ele está percebendo o seu cheiro de medo.
Aliás, todos estão. Você precisa provar a ele e aos demais que o medo não vai impedi-lo de lutar.
Mas Ferrugem não conseguia se mexer. Como iria provar àqueles gatos ferozes que não era apenas um gatinho de gente?
Rabo Longo continuou a zombar dele: - Sua coleira é uma marca dos Duas-Pernas, e esse guizo barulhento vai fazer de você, na melhor das hipóteses, um caçador de araque. Na pior, vai atrair os Duas-Pernas para o nosso território, à procura do pobre gatinho de gente perdido na floresta, com sua campainha de dar dó.
Todos os gatos gritaram, concordando.
Rabo Longo continuou, sabendo que contava com o apoio da plateia: - O
barulho do seu sino delator vai alertar nossos inimigos, ainda que o fedor dos Duas-Pernas não os atraia!
Coração de Leão voltou a cochichar na orelha de Ferrugem: - Você vai fugir de um desafio?
Ferrugem continuava imóvel. Mas, agora, tentava localizar Rabo Longo.
Lá estava ele, bem atrás de uma rainha marrom-escura. Ferrugem abaixou as orelhas e estreitou os olhos. Então, sibilando, pulou através dos gatos, que ficaram surpresos ao vê-lo lançar-se sobre o agitador.
Rabo Longo estava completamente despreparado para o ataque de Ferrugem. Cambaleou para um lado, sem conseguir se firmar na terra ressequida. Cheio de raiva e ansioso por provar seu valor, Ferrugem enfiou as garras com vontade no pelo de Rabo Longo e cravou-lhe os dentes.
Nenhum ritual sutil de miados e golpes de patas antecedeu o combate. Os dois gatos, aos gritos, se engalfinharam numa luta de saltos mortais pela clareira, no centro do acampamento. Os outros felinos precisaram dar espaço para evitar o estridente redemoinho de pelos.
À medida que arranhava e lutava, Ferrugem percebeu que não sentia medo, mas prazer. No meio do sangue que fazia ruído em suas orelhas, ouvia os gatos ao redor gritando de empolgação.
Foi quando sentiu a coleira apertar-lhe o pescoço. Rabo Longo a encaixara entre os dentes e puxava, cada vez com mais força. Ferrugem sentiu uma pressão terrível no pescoço. Sem conseguir respirar, apavorou-se. Virou-se e contorceu-se, mas, a cada movimento, a pressão piorava. Com ânsia de vômito e sufocando, reuniu todas as forças e tentou escapar das garras de Rabo Longo. De repente, com um forte estalo, ele se viu livre.
Rabo Longo caiu longe. Ferrugem se levantou e olhou à volta. Rabo Longo estava agachado a três caudas de distância, com a coleira de Ferrugem pendurada na boca, destroçada.
Imediatamente Estrela Azul desceu da Pedra Grande e silenciou a multidão com um miado tonitruante. Ferrugem e Rabo Longo continuaram onde estavam, tentando recuperar o fôlego. Tufos de pelo pendiam de sua pelagem eriçada. Ferrugem sentiu um corte latejando sobre o olho. A orelha esquerda de Rabo Longo estava bem machucada, e pingava sangue de seus ombros magros no chão empoeirado. Um encarava o outro; a hostilidade não tinha acabado.
Estrela Azul adiantou-se e tomou a coleira de Rabo Longo. Colocou-a no chão à sua frente e miou: - O recém-chegado perdeu sua coleira dos Duas-Pernas numa batalha por sua honra. O Clã das Estrelas deu sua aprovação: este gato foi liberto do jugo de seus donos Duas-Pernas e está livre para se juntar ao Clã do Trovão como aprendiz.
Ferrugem olhou para Estrela Azul e, com um gesto solene de cabeça, aquiesceu. Levantou-se e colocou-se sob um raio de sol, recebendo de bom grado o calor nos músculos feridos. A poça de luz fez brilhar seu pelo alaranjado. Orgulhoso, Ferrugem ergueu a cabeça e olhou para os gatos ao redor. Dessa vez, nenhum deles reclamou ou zombou. Ele provara ser um oponente valoroso numa luta.
Estrela Azul aproximou-se de Ferrugem e colocou na frente dele a coleira destroçada. Em seguida, tocou-lhe ternamente a orelha com o nariz e disse: - Você parece uma tocha de fogo à luz do sol - a gata murmurou, com um certo brilho no olhar, como se suas palavras tivessem um significado maior do que Ferrugem podia compreender. - Você lutoubem. - Ela se voltou para o clã e anunciou: - A partir de hoje, até receber seu nome de guerreiro, este aprendiz vai se chamar Pata de Fogo, por causa da cor de sua pelagem.
Estrela Azul recuou e, com os outros gatos, esperou pelo próximo movimento. Sem hesitar, Ferrugem virou-se e chutou poeira e grama sobre a coleira, como se estivesse enterrando suas fezes.
Rabo Longo rosnou e, mancando, saiu da clareira em direção a um canto onde as samambaias faziam sombra. Os felinos se dividiram em grupos, conversando, empolgados.
- Ei, Pata de Fogo!
Ferrugem ouviu a voz amigável de Pata Cinzenta atrás de si. Pata deFogo! Um arrepio de orgulho percorreu seu corpo ao ouvir o novo nome.
Virou-se para cumprimentar o aprendiz cinza com um farejo de boas-vindas.
- Grande luta, Pata de Fogo! - miou Pata Cinzenta. - Especialmente para um gatinho de gente! Rabo Longo é um guerreiro, embora tenha terminado o treinamento há apenas duas luas. A cicatriz que você lhe fez na orelha não vai deixá-lo esquecer você tão cedo. Você estragou aquela cara bonita, pode apostar.
- Obrigado, Pata Cinzenta - respondeu Pata de Fogo. - Mas ele é bom de briga! - Lambeu a pata da frente e começou a limpar a profunda cicatriz que latejava sobre o olho. Enquanto se lavava, ouviu novamente seu novo nome ecoando entre os miados dos gatos.
- Pata de Fogo!
- Ei, Pata de Fogo!
- Bem-vindo, jovem Pata de Fogo!
Pata de Fogo fechou os olhos por um instante e deixou-se inundar pelas vozes.
- O nome também é bom! - miou Pata Cinzenta em tom de aprovação, despertando-o do torpor.
Pata de Fogo olhou em torno. - Para onde foi Rabo Longo?
- Acho que foi à toca de Folha Manchada - disse Pata Cinzenta, apontando com a cabeça na direção do canto das samambaias, onde Rabo Longo tinha desaparecido. - É nossa curandeira. É bem atraente. Mais jovem e muito mais bonita que a maioria...
Um uivo baixo e próximo interrompeu Pata Cinzenta. Eles se viraram e Pata de Fogo reconheceu o robusto gato cinza que, pouco antes, estava sentado atrás de Pata Cinzenta.
- Risca de Carvão - miou Pata Cinzenta, abaixando a cabeça, respeitoso.
O gato lustroso olhou para Pata de Fogo por um momento. - Sorte a sua coleira ter arrebentado na hora certa. Rabo Longo é um guerreiro jovem, mas não consigo imaginá-lo derrotado por um gatinho de gente! - Fez questão de ser sarcástico ao dizer gatinho de gente; virou-se e foi embora.
- Por sua vez, Risca de Carvão - Pata Cinzenta cochichou para Pata de Fogo - não é jovem nem bonito...
Pata de Fogo ia concordar com o novo amigo quando foi detido pelo grito de alerta de um gato idoso sentado na orla da clareira.
- Orelhinha pressente problemas! - Pata Cinzenta miou, imediatamente atento.
Pata de Fogo mal teve tempo de olhar ao redor antes que um jovem gato atravessasse os arbustos e caísse no acampamento. Era magro e, fora a ponta branca da cauda fina e comprida, negro retinto da cabeça aos pés.
Pata Cinzenta engasgou. - É Pata Negra! Por que está sozinho? Onde está Garra de Tigre?
Pata de Fogo olhou para Pata Negra, que cambaleava pela clareira, respirando com dificuldade. A pelagem estava eriçada e suja; os olhos, arregalados de medo.
- Quem são Pata Negra e Garra de Tigre? - Pata de Fogo sussurrou para Pata Cinzenta, enquanto vários outros felinos passavam correndo por ele para saudar o recém-chegado.
- Pata Negra é um aprendiz. Garra de Tigre, seu mentor - Pata Cinzenta explicou rapidamente. - Pata Negra saiu ao nascer do sol com Garra de Tigre e Rabo Vermelho em uma missão contra o Clã do Rio, aquela bolinha de pelo sortuda!
- Rabo Vermelho? - Pata de Fogo repetiu, totalmente confuso com todos aqueles nomes.
- O representante de Estrela Azul - Pata Cinzenta explicou baixinho.
"Mas por que diabos Pata Negra voltou sozinho?", perguntou-se. Pata Cinzenta levantou a cabeça para escutar Estrela Azul, que dera um passo à frente.
- Pata Negra? - a gata chamou calmamente, mas com uma sombra de preocupação nos olhos azuis. Os outros gatos se afastaram, torcendo os lábios, ansiosos.
- O que aconteceu? - Estrela Azul pulou para a Pedra Grande e, de cima, olhou o gato que tremia. - Fale, Pata Negra!
Pata Negra, ainda tentando respirar, ergueu-se com dificuldade, deixando o pó da clareira vermelho de sangue; mesmo assim, conseguiu chegar à Pedra Grande e colocar-se ao lado de Estrela Azul. O gato virou-se para a multidão de rostos aflitos que o circundava e reuniu fôlego para declarar: - Rabo Vermelho está morto!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Gatos Guerreiros Na Floresta
Mistério / SuspenseEste volume, Gatos guerreiros: na floresta, conta as aventuras de Ferrugem, um "gatinho de gente" que, recrutado pelo Clã do Trovão, acaba se mostrando um verdadeiro guerreiro ao defender com coragem e integridade o clã que o acolheu.