Orgulho

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O vento soprava frio naquela noite estrelada, varrendo os destroços de uma batalha que havia deixado uma cicatriz na paisagem urbana. O anjo Rafael, mantinha-se de pé, mesmo com uma de suas asas meio quebrada e olhar penetrante, pairava sobre os escombros. Logo à frente dele, Ikaro, com estava absorto em sua música, os fones preenchendo seus ouvidos com melodias não conhecidas por quem não as ouvia. Rafael observou Ikaro por um momento, uma mistura de irritabilidade e desaprovação refletida em seus olhos. Ele começou a falar em tom solene:

-Ikaro, sempre me espanta ver como você pode se distrair com algo tão mundano, mesmo quando testemunhamos uma ameaça tão séria para o equilíbrio celestial. Algo conspurcou a pureza de meu reino sagrado, algo que pode desencadear consequências catastróficas...

Ikaro removeu um dos fones e olhou para o anjo, sem perder seu poker face característico.

-Sim, cara. Eu entendo a gravidade do que aconteceu. Mas, digamos que a música me conecta, me acalma em meio ao caos. Além disso, não posso deixar de apreciar a beleza da criação, mesmo após a destruição causada por algo de seu mundo, né não...

Mesmo que o híbrido se referisse à temível criatura que haviam enfrentado, Rafael imaginava aquilo como uma abominação que se alimentava da essência celestial. A batalha havia sido intensa, e o preço pago estava estampado nas cicatrizes do céu e na fadiga que tomava seus corpos. O arcanjo odiava isso.

-Sei que cada mortal tem suas próprias formas de lidar com os desafios, mas você, Ikaro, consegue ser mais irritante do qualquer um deles. Você deveria saber que somos guardiões do equilíbrio entre os mundos. Nossa missão é preservar a harmonia e a pureza que mantêm a ordem cósmica...

-E eu me dedico a essa missão, chapa, mas às vezes sinto que o Céu, é meio cego, não é?. A música tem poder, se você não sabe disso..., interrompeu Ikaro.

Rafael pareceu, por dois segundos, refletir sobre as palavras de Ikaro, percebendo que talvez houvesse sabedoria em sua abordagem mais flexível. Logo depois dos dois segundos, o anjo olhou novamente para os destroços que cercavam os dois e falou com um tom mais orgulhoso:

-Ahaha! Sábio... No entanto, não podemos ignorar o que aconteceu aqui. Precisamos encontrar a fonte dessa corrupção e detê-la antes que seja tarde demais. Bom, caso esteja interessado em uma recompensa, o Céu abrirá as portas para você, embora essa seja a última coisa que eu queira que aconteça...

O Arcanjo disse isso, enquanto usava sua asa saudável, para flutuar, e depois sumir num portal criado por seu próprio halo. Ikaro assistiu a essa cena, com um pouco de não-querer, embora sempre fosse admirável a forma que os Superiores usavam para se teleportar de um lugar para outro desconhecido. Talvez fosse exagero da parte deles. "Disposto a ajudar? Como se cuidar da beleza daquele lugar já não fosse o bastante..."...

Ele admirou o arcabouço do monstro inerte por um momento, refletindo sobre o preço que muitas vezes precisava pagar para proteger o equilíbrio. Ao ver o arcanjo Rafael desaparecer num portal criado por seu próprio halo, o híbrido não pôde deixar de sentir uma pontada de inveja, ainda que também compreendesse a responsabilidade que pesava sobre os ombros dos Superiores(mesmo que eles preferissem de forma egoística, ignorar). Decidiu então, deixar o local antes que a situação se tornasse ainda mais complicada, Ikaro desceu dos escombros com certa cautela enquanto as sirenes das patrulhas Ecclesiastas ecoavam pelas ruas, indicando que a ordem estava sendo restabelecida. Vestindo um boné para disfarçar-se, ele misturou-se à multidão que se afastava do lugar de embate.

A caminho de casa, ele se esforçou para ignorar as notícias que surgiam em todos os canais da TV que encontrava pela rua. Cada reportagem mostrava, o que para humanos, eram monstros gigantescos, e o que para Ikaro, eram seres da fauna angelical atravessando cidades abaixo, causando caos e destruição por onde passavam. Alguns voavam pelos céus com asas imensas, outros tinham pernas fortes e grandes, que esmagavam edifícios como se fossem brinquedos. As imagens eram impressionantes, mas Ikaro estava acostumado com esse tipo de cenário, embora preferisse não admitir.

A mesma coisa em casa. Cinco canais, cinco reportagens. Variavam em edições e nos âncoras, mas todas tinham um ponto em comum: os monstros eram perigosos e estavam em plena liberdade pela Terra. Cada âncora de notícias tentava passar uma mensagem diferente para o público, alguns instigando o medo, outros chamando à ação, mas Ikaro permanecia indiferente, quase alheio às consequências dessas aparições. Ele desligou a TV, sentindo-se um pouco entediado com a repetição dos eventos caóticos que se desdobravam lá fora. Ikaro não era um herói e não nutria grandes esperanças de salvar o mundo. Seu lugar era ali, no conforto de seu apartamento.

Mas o destino sempre é imprevisível, O som das batidas na porta ecoou pela modesta residência de Ikaro, interrompendo seus pensamentos sobre aqueles fatos. O híbrido suspirou, não surpreso, mas certamente curioso sobre o que a Ecclesia queria com ele naquele momento, certmente de caos. Ele se levantou, lentamente, preparando-se para enfrentar a visita inesperada. Ele sabia muito bem quem estava do outro lado da porta. O Comandante-mor da Ecclesia, quatro policiais da Guarda Áurea e um Padre, que compunham, na frente de sua casa, uma presença imponente e autoritária. Ao se aproximar da porta, Ikaro abriu-a com um gesto calmo, encarando o Comandante-mor nos olhos. O semblante do oficial era impassível, sem denotar medo ou submissão. Ikaro estava ciente de que não podia ignorar a Ecclesia, mesmo que preferisse não se envolver com os assuntos celestiais, e aqueles caras, eram tão profissionais quanto um Anjo(em certos casos, até mais).

-Ikaro, sabíamos que você estava em casa. Acreditávamos que poderíamos obter informações sobre... a situação atual de nosso Plano, hoje. Temos muitas perguntas a fazer, se não se importa....

Three Ways - Season IIOnde histórias criam vida. Descubra agora