Possíveis gatilhos:
Claustrofobia, descrição de ataque de pânico/ansiedade. Se for sensível a esses temas não é recomendado ler o texto a seguir, lembre-se que seu bem estar mental vale mais que qualquer entretenimento.
A praça não estava especialmente lotada naquele domingo como costumava estar nos demais. O parquinho se encontrava quase vazio, por ali se via apenas um grupo formado não mais do que por 4 mulheres que conversavam enquanto seus filhos brincavam por perto, sempre atentas, olhando por sobre os ombros para que eles não se afastassem muito. Um pipoqueiro estava do outro lado da praça. Um cara de óculos escuros e roupa de academia corria junto com seus golden. E em um banco estava sentado um casal de jovens que dividiam um sorvete e fumavam cigarros de menta.
A cor cinza e o ar pesado poderiam justificar aquele vazio incomum.
A sensação era acre. Uma tempestade se aproximava.
Ou talvez, quem sabe, algo pior.
Apesar da quantidade parca de pessoas, Flávio ainda precisava trabalhar. Haviam crianças ali, então talvez ele conseguisse convencer alguma de que ela precisava ir ao circo e a criança lhe faria o favor de pela insistência convencer a mãe. Que pegaria um panfleto, com um sorriso áspero no rosto e dizendo ao filho que eles iriam ver o espetáculo mais tarde, enquanto puxava a criança pelo braço, antes que ela lhe fizesse prometer mais alguma coisa.
Flávio suspirou. Não importa se ela vai ou não, eu ainda vou receber.
Flávio suspirou. Não importa, as coisas melhoraram em breve assim que o resultado do concurso sair, eu só preciso desse bico por enquanto.
A tinta branca em seu rosto pinicava, ele conseguia prever uma reação alérgica vindo. Dermatites no rosto, claro, como se sua aparência normal já não fosse repugnante o suficiente. E mais uma vez, antes de tomar coragem de finalmente se aproximar das crianças, que brincavam no canteiro a poucos metros do lugar onde as mulheres conversavam. Ele caminhou até elas sempre se certificando de estar sob o olhar das mães, sorrindo e acenando para elas, como se pedindo permissão para se aproximar de seus. Talvez a parte mais difícil desse trabalho fosse a de não parecer um maníaco pervertido tentando sequestrar criancinhas.— Ei. — uma garota de tranças loiras cutucou o garoto de macacão laranja — um palhaço!
Ela apontou para Flávio. Ele sentiu as palavras se formarem em sua garganta. Não sou um palhaço, sou um mímico. Mas dizer isso lhe tornaria realmente um palhaço, então ele as engoliu.
Ele sorriu, sentindo mais que vendo as mães o encarando com aquele olhar protetor que ele já estava familiarizado. Havia apenas duas crianças ali, outras três estavam brincando de pega-pega ou algo assim, elas corriam pela praça, então abordá-las seria muito mais complicado.
Ele insinuou caminhar em direção a menina, parando quando uma parede invisível lhe barrou o caminho.
O mímico fez uma expressão confusa, se jogando exageradamente para trás, o que tirou um sorriso da garota loira, que agora lhe dedicava exclusiva atenção. O garoto de macacão laranja, apenas o encarou e voltou a mexer com suas miniaturas de dinossauro.
Fingindo não prestar atenção às crianças sentadas no chão a sua frente, Flávio ameaçou andar mais um vez, dessa vez tateando com as mãos frente ao corpo, para que nenhuma parede surpresa pudesse lhe atrapalhar. Tateou pela parede imaginária até encontrar uma maçaneta, que ele girou uma, duas, três vezes até perceber que estava trancada.
Levou a mão ao queixo, dando algumas batidinhas com o indicador nele. Sua expressão se iluminou e ele sorriu, erguendo a mão fechada, com o indicador para cima como se apontasse para o céu, indicando que tinha uma ideia. Pegou um pedaço de papel no bolso e o dobrou no que lembrava vagamente o formato de uma chave. Colocou na fechadura imaginária e girou. A porta abriu.
Ele suspirou, mais uma vez utilizando de expressões e movimentos exagerados para comunicar seu alívio sem palavras. Enxugou o suor imaginário da testa, deixando a chave cair no chão, fazia parte do seu número ficar preso e pedir para a criança abrir a porta com a chave de papel O mímico se pôs a atravessar a porta dobrando o corpo, pois ela parecia ser um pouco mais baixa do que o comum. Antes de poder se afastar da porta imaginária, tropeçou em um obstáculos também invisível e caiu no chão, rolando enquanto seu rosto se contorcia em expressões cômicas de dor. Fazendo com que voltasse para o lugar que estava antes.
A garota loira segurava a barriga de tanto rir, enquanto o menino apenas o encarava com um olhar curioso e divertido.
Esse era o momento em que acontecia.
Ele não sabia dizer se era porque as mães se preocupavam em ver seus filhos tão descontraídos perto de um homem estranho em roupas de palhaço — de mímico! — ou se apenas sentiam alguma pontada de ciúme ou divertimento que as faziam se aproximar.
Uma mulher de baixa estatura, olhos azuis rodeados por olheiras enormes e um cabelo loiro repuxado em um coque alto se afastou do grupo, que contava com mais outras três mulheres que olhavam de soslaio para o mímico com as crianças. A mulher se aproximou a passos largos, o rosto em uma expressão fechada, agora ela se encontrava do lado das crianças. De alguma forma ela conseguia dividir seu olhar entre as crianças e o mímico. Sendo dócil e agressivo ao mesmo tempo.
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O Mímico
Short StoryFlávio era mimico. Não por vocação, não porque era seu sonho, apenas porque lhe ofereceram o emprego e ele precisava do dinheiro. Ele não era especialmente bom nisso, mas sabia o suficiente para trabalhar distribuindo panfletos do Circo Somnium por...