O Mímico

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A sensação de peso nas pálpebras, como se houvesse pequenas bolas de aço penduradas pelos cílios as puxando, dificultando o ato de as abrir, havia sido um sentimento muito comum a Flávio na época que só conseguia dormir sob o efeito de remédios pesados. Porém agora, depois de tanto tempo que havia aceitado a insônia como fiel companheira, a estranhou.
Quando abriu seus olhos, entre piscadas rápidas como se fosse impossível os manter abertos, se viu saindo de uma escuridão completa, para se deparar com uma pontuada por ocasionais focos de luzes amarelas. Sua mente se embaralhou por alguns instantes, ele esperou ver o forro de teto sujo da casa de sua irmã. Esperou ver o velho e quebrado ventilador de teto, com suas pás empoeiradas, ou a estante cheia de DVDs velhos, livros mais ainda e fotos em quadros, muitos quadros. No lugar disso, viu a Praça do Parquinho tomando forma ao seu redor. Ele tinha ido aí ontem, para tentar atrair algumas pessoas para o circo que estava na cidade, que o tinha contratado porque ele era a única pessoa com experiência em mímica em toda aquela cidade. Ou talvez porque você a unica pessoa que parecia desesperada o suficiente para aceitar.
A sensação de claustrofobia voltou com a memória. Uma certeza absurda de estar enclausurado. Sufocando.
Isso não tinha sido ontem.
O mímico daria tudo para não admitir que o primeiro pensamento que lhe passou pela cabeça foi um que lhe soava carente e desesperado.
Não eram sequer três horas da tarde quando ele chegara naquela praça. Quanto tempo ele tinha ficado ali largado no chão daquela praça sem que ninguém sequer tivesse pensado em o acordar?
Visto somente como mais algum vagabundo, mais algum maluco fantasiado, bêbado ou drogado caído em uma praça misericordiosamente vazia.
Agora estava escuro e vazio o suficiente para o fazer pensar que estava no meio da noite, largado em um chão estranhamente duro depois de ter uma crise de histeria ou como quiser chamar.
Alguém ao menos tinha procurado por ele?
Suas pernas doíam. Estava deitado com elas dobradas e estivera assim por um bom tempo. Todo seu corpo implorava por um espreguiçamento. Todas as suas articulações queimaram ao menor movimento. Por ainda estar desnorteado não tinha feito muitos.
Um flashback do delírio que tivera lhe veio à mente. Riria disso no futuro, tinha certeza, agora no entanto, sentia dores demais para se permitir rir.
Seus olhos começaram a se acostumar com a baixa luminosidade, as poças de águas espalhadas pela praça lhe confirmavam a ideia que tivera mais cedo. Um temporal tinha passado por aqui.
Flavio puxou suas pernas, que protestaram com agulhadas de dor, para junto do seu torso, sentando e as abraçando, esperando assim afastar o frio.
Ele não sentia frio.
A sensação era a mesma de quando chegou ali a tarde. Não fazia calor, também não fazia frio. A sensação era a de que começaria a chover a qualquer momento.
Não havia vento.
Sua respiração falhou, a sensação de terror retornando, quando o silêncio se fez mais uma vez tão notável.
Por que eu não estou ensopado se estive aqui a tarde toda?
Não pense. Acorde.
Por que eu não estou com frio quando é claramente noite e tem tanta água ao meu redor?
Não pense. Acorde.
Ele queria muito, mas não encontrava forças para se levantar e testar dar dois passos, que nesse pesadelo era seu limite.
Não conseguia levantar e erguer o antebraço acima da cabeça. Que nesse pesadelo era seu limite.
Sentiu lágrimas escorrerem pelo seu rosto. E dessa vez eram de medo. De dor. De um frio que vinha da alma.
De solidão.
Se encolheu ainda mais, uma parte da sua mente desenhando em rabiscos maníacos o quanto ele queria desaparecer.
Ele fechou os olhos. Implorou para acordar.
Neste momento, não importava quanto tempo ele passou discutindo na internet que Deus não existia. Quantas vezes ele discutiu com a mãe por acreditar nesse ser que pra ele não passava de um mito.
Nada disso importava. Ele precisava acordar, sair desse pesadelo.
Como prova de seu desespero, ele rezou. Com palavras emboladas, escritas de forma confusa no quadro negro que agora era sua mente.
Aquelas preces desconexas lhe inspiraram alguma coragem. Anos de ateísmo apagados pela necessidade absurda de auxílio. Usando essa coragem recém adquirida estendeu a mão a frente, inclinando seu corpo para testar se encontrava alguma resistência. Não saberia quantificar o seu horror quando antes mesmo de esticar completamente o braço atingiu uma parede. E acima de tudo, sentiu que havia sido abandonado, por Aquele que nunca ao menos procurou.
Soltou um grito silencioso, que saiu queimando sua garganta ressecada, levou a mão em direção a boca, sentindo o ar quente que escapava por entre seus lábios enquanto gritava. Seus lábios ardiam.
O desespero era como veneno em suas veias, quanto mais ele se agitava, mais rápido seu coração batia, mais rápido o veneno se propagava.
Ele tentou se afastar da parede impossível e se saiu pouco mais de um centímetro do lugar antes de sua nuca se chocar contra algo duro. Por reflexo seus joelhos se flexionam, o forçando a levantar. Ou a tentar, porque ali, cinco ou sete centímetros acima da sua cabeça estava o teto.
E os dois passos de distância?
E sua altura completa e um antebraço de altura?
Agora isso parecia tanto espaço.
Ele sentiu algo frio se forçar contra suas costas, contra a frente das suas pernas dobradas frente ao corpo, contra as laterais de seu corpo. Contra o topo da sua cabeça, esmagando completamente a boina estúpida que ele usava.
Ele voltou a imaginar seu corpo explodindo, cedendo a pressão que aquela caixa invisível imporia contra ele.
Contudo, não aconteceu.
A força suave que ele sentiu em todas as quinas de seu corpo apenas parou.
Ele quase se permitiu sentir alívio.
A percepção de que ele simplesmente não podia mais se mexer não deixou que aquele sentimento crescesse. Foi soterrado pela onda de pânico que não parava de crescer.
Sentiu um líquido quente escorrer pelo exterior de sua coxa esquerda e só então tomou consciência de que suas unhas estavam fincadas na pele, presas ali pela parede que o comprimia de forma tão suave, que se não fosse pelo desespero, Flávio poderia se sentir abraçado. Moveu o rosto, tentando olhar o estrago que estava sendo feito, ao mesmo tempo que tentava retirar suas unhas da carne. Uma missão inútil. Tudo que ele conseguiu ver a borda do o panfleto do Circus Somnium, manchada pelo seu sangue, preso entre a mão e a coxa. Por algum motivo ele não o tinha soltado.
Tentou erguer a cabeça de volta à posição original. Porém o teto havia baixado para o acompanhar seu movimento e agora ele se via obrigado a deixar seu queixo apoiado sobre as coxas, seu rosto parcialmente virado para a direita. Uma posição extremamente desconfortável para seu pescoço, que já dava sinais nos primeiros segundos passados.
Se passaram minutos.
A cada pequeno movimento, voluntário ou não, que ele fazia buscando conforto, tentava respirar com mais facilidade, mas sua mobilidade — ou melhor, imobilidade —, se comprometia.
Ele sentiu culpa e arrependimento por ter desmaiado. Como se tivesse optado pela inconsciência. Lembrava vagamente de a ter a percebido e a aceitado como uma benção. No momento só conseguia pensar que talvez se ainda estivesse de pé, se ainda tivesse uma caixa maior que lhe permita poucos passos, dois pra cada lado, do lugar onde inicialmente estava.
Quem sabe ele não podia ter conseguido ajuda.
Quem sabe ele não estaria em casa agora postando essa experiência para incrédulos do twitter.
Contando por mensagem aos seus amigos, divididos entre acreditar em um evento sobrenatural e acusá-lo de estar se drogando. Clara acreditaria nele?
Sua irmã, que conhecia seus problemas mais que ninguém. Será que o acusaria de loucura? Ou, não duvidaria que ela só dissesse para ele descansar mais.
Ela dizia isso a cada novo bico que ele arrumava, dizia que ele deveria ficar em casa e estudar. Não percebia o que ele se sentia como um parasita quando ficava parado. Ela era a única da família que tinha sobrado. A única família que não tinha decidido que ele não existia.
Sentiu falta dela, será que ela não o procuraria?
Desejou muito ter espaço suficiente para pegar o celular no bolso, mesmo sabendo que não tinha bateria.
Desejou mais que tudo não ter cedido ao pânico. Queria ter ficado acordado. Talvez tivesse uma chance se estivesse em pé.
Mas isso não tinha acontecido. Ele tinha desmaiado, tinha caído e agora estava sentado abraçando suas próprias pernas, uma a qual sangrava continuamente, em suas tentativas vãs de achar conforto tinha enfiado as unhas tão profundamente que sentia a carne de suas coxas pulsando nos dedos. O papel em suas mãos agora não passava de um borrão vermelho, depois de absorver tanto sangue começava a se desmanchar.
Sua pose era uma assumida tantas outras vezes antes, quando o desespero se apossou dele, o fazendo deitar no chão, exatamente assim. Com lágrimas brotando em profusão de seus olhos. O peito apertado.
No entanto, naquela época tinha um inegável conforto em se deitar daquela forma, como chamam?
Posição fetal.
Sim, tinha. Seus membros ficavam todos rentes ao chão e não havia nenhum peso invisível o forçando no lugar, mesmo que na época ele pudesse jurar que sim. A certeza que tinha aqui era muito mais concreta, muito pior, muito além de um psicológico destruído. Pelo menos existiam a falsa sensação de escolha.
Seu cóccix doía, pelo tempo sendo forçado ao chão. Não parecia ser o chão de terra do canteiro que tinha entrado para performar para as crianças, isso agora parecia tão distante. As poças que se formavam ao seu redor, mas não embaixo de seu corpo, o sentimento de estar sentado em algo perfeitamente reto.
Era o chão da caixa.
Sua prisão de vidro impossível.
Invisível.
Definitiva. ?
Ele não sabia quando o terror tinha se desvanecido daquela forma, ele estava quase calmo. Mesmo as dores que o faziam gemer em silêncio pareciam distantes naquele momento.
O sol ameaçou raiar no horizonte. O mímico no entanto não tinha visão do céu com seu pescoço sendo forçado para baixo, apenas viu o mundo assumir um tom alaranjado característico da aurora. Com um  pouco mais de claridade ele pode perceber que chuviscava.
Uma dor enorme se apossou de seu peito. Ele nunca imaginou que perderia a chuva.
Ele estava ali, sentado em campo aberto. Entretanto, não era capaz de ouvir a chuva.
Não era capaz de senti-la.
De sentir o vento, ou qualquer coisa fora daquela caixa maldita.
Aquele baque foi demais para ele. Seus olhos ardiam, chorava lágrimas secas. Descobriu que mesmo agora ainda precisava de comida e água e não tinha nada daquilo ali.
Tinha somente a caixa.
Tinha somente a si mesmo.
Como única opção, adormeceu.

Como única opção, adormeceu

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