𝐂𝐚𝐩𝐢𝐭𝐮𝐥𝐨 𝟏

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—E você mandou ele se ferrar, né?

Crowley estava cercado por estantes de livros enquanto encarava Aziraphale na outra extremidade da livraria. O anjo havia acabado de entrar e mostrava-se radiante após uma conversa com o porta-voz de Deus. Conforme o que foi dito por Aziraphale, Metatron ofereceu, de forma análoga ao que havia sido oferecido à Crowley não muito tempo antes, ser aceito novamente no Céu, dessa vez como Arcanjo Supremo. O demônio ouviu tudo isso e estava pasmo, quase enojado, com a ousadia e ignorância do povo celestial em fazer uma proposta dessa após terem sentenciado seu anjo à extinção, em um tom que demonstrava que, para eles, Aziraphale não era mais do que uma mosca que os incomodavam com seu zumbido. Aziraphale não estava lá de verdade naquele dia, mas Crowley tinha certeza de que não era a primeira vez que tratavam o anjo assim.

—Eu não falei isso— claro que não falou, Aziraphale nunca diria palavras tão baixas para alguém.

—Nós somos melhores que isso, você é melhor que isso, anjo! O inferno me queria de volta e eu recusei, não aceite isso.

—Claro que você recusou o Inferno. Vocês são os maus— "vocês são os maus". Crowley achava que Aziraphale estava certo de que ele não era tão mau assim. — Mas o Céu... é o lado da verdade, da luz...da bondade.

—Quando o Céu eliminar a vida aqui, será como se tivesse sido o Inferno—essa era uma das poucas coisas que Crowley tinha certeza agora, porque depois dessa conversa, sentia que estava errado sobre muitas coisas a respeito do nosso amigo Aziraphale.—Diga que você recusou.
Crowley sabia, pelos olhos e tom de voz de Aziraphale que o anjo não havia recusado, mas carecia de ouvir o contrário de sua boca. Era a única coisa sobre a qual Crowley gostaria de estar errado.

—Diga que você recusou.

—No comando, posso fazer a diferença.

Crowley não estava errado.

—Aí nossa, eu nem disse o que queria. Vou dizer agora.

O demônio não fazia ideia do quanto precisava ter aquela conversa com Nina e Maggie, até tê-la. Ficou surpreso com a forma que sentimentos tão confusos e ignorados por tanto tempo dentro de si pareciam tão claros para os outros. Era amor, afinal o que vinha sentindo por tantos anos só de pensar em Aziraphale. Agora, ainda cobertos pela bruma de paixão deixada pelo romance de Gabriel e Belzebu, era o momento ideal para Crowley dizer isso ao seu anjo.

—Tá, lá vai... Então... A gente se conhece há tempos.

Nem a ameaça do Armagedom havia deixado sua garganta tão seca e seu coração tão acelerado.

—Estamos há eras nesse planeta, você e eu. Eu sempre contei com você, e você sempre contou comigo.

Crowley olhava para todos os lados, esperando que algum daqueles milhares de livros espalhados por todos os cantos pudesse abrir, como em um passe de mágica, na página exata que lhe mostraria as palavras exatas para explicar ao anjo o que sentia.

—Somos um grupo. Um grupo de dois, e passamos a existência inteira fingindo não ser. Bem, não nos últimos anos. Eu quero passar...— "eu quero passar a eternidade com você" era o que gostaria de ter dito.

—Se Gabriel e Belzebu podem viver juntos, nós também podemos. Só nós dois. Não precisamos do Céu e do Inferno, eles são tóxicos.

Aziraphale ouvia tudo isso muito quieto, com uma expressão indecifrável, mesmo para quem o conhecia há 6.000 anos. Era quase como se ele não estivesse ouvindo ou entendendo o que Crowley estava dizendo, porque as palavras de Metatron cegaram seus olhos e ensurdeceram seus ouvidos.

—Podemos ficar longe deles, sermos "nós". Você e eu. O que acha?

Crowley apertava seu óculos com tanta força em sua mão que a armação estralava.

—Venha comigo para o Céu. Vou comandar, você pode ser meu braço direito. Faremos a diferença.

O anjo estava tão seduzido pela proposta feita que nada mais lhe parecia digno de atenção. Dizia isso como se não tivesse ouvido uma palavra dita por Crowley.

—Não pode deixar a livraria— "Não pode deixar seus rodízios de sushi das sextas-feiras. Não pode deixar seus discos de música clássica. Não pode deixar Londres. Não pode deixar a Terra. Não pode deixar a mim.", era a prece silenciosa contida na curta frase dita por Crowley.

—Oh, Crowley...—o anjo se aproximou, os olhos brilhantes encarando de tão perto os da serpente.—Nada dura para sempre.

Então era isso.

—Não— Crowley põe de volta os óculos, sem a menor vontade de encarar aqueles pálidos olhos azuis, cegos pelo brilho de uma oferta tão medíocre. Não via ali seu anjo. Estava implorando para que Aziraphale não estivesse se tornando um daqueles desdenhosos anjos que tivera o dissabor de conhecer. —Parece que não mesmo. Boa sorte.

Crowley caminhou até a porta da livraria, com o queixo erguido para que as lágrimas que teimavam em se acumular nos seus olhos não escorressem. Não queria ir embora de verdade. Não era bem ele que tinha intenção de partir.

—Crowley...Crowley, volte...—isso o fez parar a poucos passos da porta, uma fagulha mínima de esperança se acendeu— para o Céu. Trabalhe comigo. Lado a lado, como anjos. Faremos a diferença. Eu preciso de você. Não entende o que estou oferecendo.

E ali a fagulha se apagou mais uma vez.

—Entendo sim. Entendo melhor que você —a única parte que Crowley não entendia era o desejo de Aziraphale em vê-lo feliz olhando suas tão prezadas nebulosas como anjo novamente, como na vez em que se conheceram.

—Bom. Então é isso.

—Escute. Está ouvindo?

—Eu não...Eu não estou ouvindo nada.

—Exato. Nenhum rouxinol.— Crowley lembrou daquela música, fatídica música que vinha em sua cabeça toda vez que jantavam no Ritz. —Seu idiota, poderíamos ter ficado juntos.

A serpente tão teimosa não aguentaria ver o anjo abandonar o lugar que praticamente criaram juntos antes do início dos tempos. Tantas vezes lutou junto a Aziraphale, e agora iria lutar por ele.

Em um ato de desespero e súplica, movido pela urgência de tentar fazer o anjo entender finalmente sobre o que estava falando, Crowley caminhou em direção a Aziraphale, com passos firmes que por fim levariam o desfecho de ter sua boca pressionada contra a dele. Não sabia ao certo que estava fazendo, mas nada mais lhe importava a não ser expressar naquele gesto tudo o que não era capaz de demonstrar falando. E malditos sejam os céus, aqueles lábios...Ninguém pensaria ser possível os lábios de um anjo serem a maior perdição de um demônio.

O beijo pareceu quebrar por poucos segundos todo e qualquer encanto proporcionado pelas palavras de Metatron na alma de Aziraphale; segundos esses em que o anjo permitiu-se entrar no paraíso que eram os lábios de Crowley, deixando que suas mãos pousassem nas costas do demônio.

Aziraphale tão confuso não sabia ao certo o que sentir; estava assustado, principalmente após ter ciência de que gostou de algo que, em seu papel de anjo, devia repugnar. Olhou para os olhos da serpente por trás das lentes escuras, ofendido com a audácia da criatura em ter apenas despertado em si desejo que tentava rejeitar. Não sabia mais o que pensar, porque em sua cabeça nada mais se formulava além de "eu te amo".

—Eu...Eu...—eu te amo. —Eu te perdoo.

—Não precisa.

Aziraphale denotava o mais puro estado de espanto, não só devido ao beijo, mas pelas palavras tão rudes que escaparam de sua boca. O anjo não seria capaz de tamanha frieza após tal demonstração de amor; mas já era tarde demais, as palavras tão insensíveis acertaram em cheio o peito do demônio, e as últimas coisas que Aziraphale viu foi o efeito delas em forma de uma lágrima solitária, quase invisível, trilhando um percurso pelo rosto do anjo caído e desaparecer, por fim, em seu pescoço, antes deste sair pela porta.

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⏰ Última atualização: Mar 09 ⏰

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O Canto do Rouxinol| 𝐀𝐳𝐢𝐫𝐚𝐜𝐫𝐨𝐰Onde histórias criam vida. Descubra agora