Eu só queria que o mundo parasse um pouco. Que desse pause, não precisava ser stop. Pra eu poder meditar e editar o meu eu e, ao terminar, saber que encontraria tudo como antes. Pra tentar entender como foi que eu cheguei aqui, em lugar nenhum.
Poder me reinventar num mundo que fosse real, com pessoas de verdade, de carne, osso e palavras - e elas nem precisavam ser sinceras.
Eu só quero ir, seguir em frente e fazer tudo, nada, qualquer coisa, menos ficar.
Menos ficar.Fecho o caderno e deixo essas palavras sem sentido pairando sobre a folha antes em branco. Coloco a caneta ao lado, sem a tampa. Deve estar perdida por aí, em algum lugar no meio da minha bagunça. Eu poderia procurá-la, mas não tenho energia para isso.
Empurro a cadeira com as costas para afastá-la da escrivaninha mas não me levanto. Não há nada para fazer. Ninguém me espera, o telefone está desligado. Na geladeira, água. Penso em ir ao supermercado comprar uma garrafa de vinho, mas desisto. Nunca consegui criar aquilo o que as pessoas chamam de resistência alcoólica, e olha que eu bem tentei.
Seria bom poder esquecer, o problema é ter que lembrar depois. Com dor de cabeça e enjôo no estômago. Melhor não.De um lado, uma pilha de roupas limpas. Do outro, uma estante abarrotada de livros empoeirados. Há meses eu não pego nenhum deles. Não preciso sonhar com romances, permanecer tensa com thrillers psicológicos ou aprender sobre letras de câmbio. Dentro de mim há drama, dor, ódio, amor, mistério e corrupção suficientes para bibliotecas inteiras de sentimentos. Dostoiévski na veia.
Sinto uma vontade enorme de tirar a roupa e me lembro de que já o fiz. Abro o fecho do sutiã e me dispo, mantendo apenas uma última resistência. Estou quase livre, mas me sinto presa à minha própria pele, acorrentada a uma angústia que não tem início, nem fim. Se eu gritasse, apenas um grito, me sentiria melhor?
Encontro um propósito e me levanto. Com Korn no último volume, canto Alone I Break como se não houvesse amanhã. Que se danem os vizinhos, não me importo. O violão com cordas partidas atrás da porta é meu baixo, as mãos em punho projetam minha voz rouca rumo ao nada.
Eu grito. Não canto, só berro bem alto mesmo, libertando um pouco meu peito desse aperto insuportável que me faz querer abri-lo com o estilete que deixei sobre a pia do banheiro.
A música acaba, cessa o barulho e o vizinho deve ter desistido de ligar para a polícia.
Tento respirar, mas minha caixa torácica decidiu se fechar com meus órgãos dentro e o ar não sai. Cambaleio até o quarto, apenas alguns passos me levam ao criado mudo e agarro a bombinha. Puxa. Um. Dois. Três. Puxa. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Puxa. Um. Dois...
Soluço. Quero chorar, mas não consigo. Fico assim, soluçando a seco, a respiração se normalizando aos poucos. Não devia ter pulado tanto enquanto "cantava".
Eu ferrei com tudo.
Sempre fazia isso. Nunca soube a hora de parar, nem a de seguir. Sou um modelo antigo, uma peça vintage,: vim sem timer, sem timing, sem software para despertar. Falo quando devo calar, penso quando preciso expressar, danço quando todos se sentam e chuto o balde quando tudo o que eu queria era aceitar qualquer forma de carinho que ele pudesse me dar.
Coração partido: eis o meu mal. Não, originalidade não é a minha vocação, sofro da moléstia mais antiga, clichê e cafona da qual já se ouviu falar. Quem nunca sofreu de amor que aguarde - nem mesmo aqueles que se resguardam estão imunes: um coração se parte até mesmo por não saber amar.
Ter cuidado, manter a distância, criar uma fachada, não ouvir nem falar demais - nada disso impede que esse órgão debande para o lado do primeiro sorriso torto, sexy e cercado por uma barba rente que cruzar o caminho. Ele não tem nenhuma consideração pelos nossos medos, o coração. E eu não tenho nenhum controle sobre ele.
Que piada. A palavra controle só se aplica a mim quando associada ao prefixo -des.
Volto ao outro cômodo, pego a primeira camiseta da pilha. Está amassada e eu esqueci de pôr o sutiã, mas a estampa dos Ramones em preto disfarça a minha pele sob o tecido branco. Visto a calça jeans que ficou no piso do banheiro e olho do relógio: são duas e vinte da madrugada e o supermercado não é mais uma opção.
Nenhum par de meias à vista, calço os chinelos. Talvez meus pés congelem e gangrenem, mas o mais provável é que eu pise numa poça d' água, afinal, é verão e a tempestade breve sequer refrescou o ar abafado.
Me olho no espelho. A bagunça dentro de mim transbordou os meus cabelos e impregnou o apartamento, passando pelos meus olhos borrados de rímel. Dou um jeito para fingir um equilíbrio que não tenho. Apago as evidências que a dor deixou em minha pele, penteio a moldura, aplico uma camada de amor próprio.
Encontro meu olhar e me denuncio a mim mesma. Essa mulher eu conheço, conheci. Está estranha, parece perdida, mas já a vi por aqui antes. Talvez com outras roupas, em outras companhias, mas já cruzei com ela. Foi bonita, um dia. Se amou. Foi amada.
Pego uma nota de cem na bolsa jogada sobre o sofá, a última da carteira. O bar da esquina deve estar aberto.
Vodca vai ter que servir.
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Escritos
ContoÀs vezes dá vontade de escrever qualquer coisa. Sem início, meio, fim ou recomeço. Crônicas, comentários avulsos, pensamentos, contos, poesia barata. Em outras dá vontade de publicar. Expor os delírios da pseudo-escritora que me habita, revelar o í...