Nick, agora Jay.

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Existem dois egos, ele e eu.
Ele surgiu em alguma brincadeira de infância, como outono que se achega e busca aconchego debaixo das cobertas, na xícara de chá, no calor da lareira.
Era um amigo imaginário, um mero fruto de uma mente fértil. Mas logo deixou de ser apenas um pensamento, e tornou-se a sombra que me persegue a cada passo.

Eu não sinto mais medo, como sentia antes, de sermos notados. Nós somos um só agora. Eu e ele, ou apenas eu.
Demorou um pouco para que eu soubesse, para que eu entendesse o que nós somos.

Ele era um dos meus demônios, segundo mamãe. Era ruim. Deveria ser. E eu deveria ficar longe dele.
Mas eu nunca me importei que houvesse um fantasma ao meu lado na cama, ou o que quer que ele fosse. Nunca mesmo.

E eu não sabia porquê, mas eu queria que ele estivesse ali. Era menos inseguro com ele ao meu lado. Éramos dois contra o monstro que morava debaixo da cama, e éramos dois lutando com dragões nos meus sonhos também.

Mas ninguém, além de mim, podia vê-lo. E por isso, eles insistiam que eu estava alucinando.
Papai orava por mim, e mamãe lia versículos que eu deveria decorar, porque me faria bem. Porque afastaria ele de mim.

Mas Nick e eu nos tornamos inseparáveis, porque ele estava lá quando não havia ninguém para mim, e nunca houve ninguém para mim, então ele sempre estava lá.

Nós fazíamos desenhos, teatros, desfiles de moda com as roupas da mamãe e brincávamos de casinha.
Éramos felizes, exceto por um detalhe: ele era invisível, e eu não.

E por isso, eu não podia brincar com ele quando estávamos na escola. As outras crianças me achariam estranha, afinal, eu já era diferente o bastante para que não coubesse nos padrões delas. Eu não era amiga de ninguém, e não fazia parte de nada. Ninguém me queria por perto.

E por isso, achava eu, seria melhor se eu fosse invisível, assim como ele.
Pensava que, se não pudesse ser vista, as crianças da escola não poderiam me deixar de lado, afinal, não estariam me vendo enquanto eu caminhasse pelos corredores, entre as classes, ou corresse pela grama.

Seria menos deprimente que receber olhares julgadores ou ouvir piadinhas sobre minha aparência.
Mas apenas não era possível.
Então eu estava sozinha.

O primeiro ano escolar fora um dos piores, exatamente por esse porquê.
Toda a empolgação que eu tinha para estudar, escorreu pelo ralo quando eu percebi que nunca estive pronta para conviver com outras crianças, que eu não me encaixava em nenhum grupo de amigos e que ninguém fazia questão de mim. Se eu não estivesse lá, apenas não faria falta.

Doía. Mas eu não tinha coragem de admitir, e sempre disse para a mamãe que "a aula foi ótima" sorrindo como se tentasse me convencer daquilo.
Apesar de tudo, era suportável. Além do mais, quando eu finalmente chegasse em casa, Nick ainda estaria lá, me esperando.

E foi assim durante um ano inteiro.
Nós construímos nosso próprio universo, onde eu poderia ser o que quisesse e ter os poderes que quisesse. Não era bem como "Ponte para Terabítia", era um pouco mais peculiar. Mas lá eu era invisível como ele, e apenas isso bastava.

Passaram-se cinco anos, até que eu descobri que era capaz de fazer amigos reais também, e deixei de viver trancada dentro da minha própria imaginação. Ao menos fingi que deixei.

Ter amigos reais era gratificante, na maior parte do tempo. Eu não era apenas uma estranha agora, eu tinha outras pessoas estranhas comigo.

Éramos o grupo de garotas que, apesar de impopulares, sempre são notadas.
Eu andava com outras três, cada uma com suas particularidades, e tínhamos uma relação aceitável que perdurou por pelo menos dois anos. Até que parte do grupo começou a se dissolver, por inúmeras razões, e aos poucos aquele calor e acolhimento evaporou, sobrando apenas eu e Giovanna, que tornou-se minha melhor amiga.

Eu não podia negar, era ótimo ter com quem conversar, dividir segredos e colecionar momentos. Mas ainda assim, não se comparava ao que existia entre mim e Nick. Afinal, agora não éramos só eu e Nick, havia um universo inteiro.
Inúmeras pessoas com quem eu podia contar sempre, pois eram resultados da minha própria mente. Nick tornou-se Jay, em algum momento em que achei esse nome mais conveniente. Eu não sei, eu não lembro.

E com o passar dos anos, aprendi a não evidenciar minhas interações com eles, com meus fantasmas, para não ouvir que eu sou louca. Ninguém percebe — e ninguém precisa —, mas eles me seguem por aí, e fazem parte de mim.

Eles são eu, Nick sou eu, só que em outra versão. A versão onde eu posso ser um homem, sem que ninguém me julgue por isso.
E desde então, eu não preciso mais ser apenas o que os outros vêem. A estranha. Eu posso ser o que eu quiser dentro dos limites da minha imaginação.
Mas a imaginação nunca teve limites.

Versões de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora