Naquele dia descobri o quão afiadas são as cartelas de comprimido metálicas e que deixam cortes muito, muito finos, mas sangram sem parar desde que sejam feitos bem rápido, sem pausa. Não dói tanto assim durante esse processo, só na hora de limpar, aí arde como o inferno. As cicatrizes são fendas sutis como traços de grafite 0.7 e se parecem com trincados numa película de celular ou arranhões feitos com palha de aço numa superfície de alumínio, infelizmente muito notáveis mesmo depois de desinflamadas.
Parecem profundos de perto e a pele fica repuxando se você lamber em cima, eu fiz porque não tinha com o quê limpar na hora e não podia sair do quarto pra buscar álcool e algodão na cozinha, pra isso precisaria passar pela sala onde todo mundo assistia televisão - fiz por curiosidade, também. O que eu não tinha certeza naquele dia era se tinha sido uma boa ideia concentrar todos os golpes num lugar só em vez de dispor eles pelo braço todo, não sabia qual das duas opções combinava melhor com "pois é, minha gatinha não lida muito bem com carinho".
Eu sei que isso é um puta tabu, mas sei com mais certeza ainda que não falar sobre algo não faz com que esse algo exista menos.
Em outro momento alcancei uma concha marinha que enfeitava a mesa de cabeceira, afiada, e arrastei sobre o pulso algumas vezes-só o bastante para substituir o mal-estar mental pela dor física, isto é, sem deixar cicatrizes. Mas linhas rosadas ainda denunciavam a irritação na minha pele quando andei pelo centro depois da última sessão de terapia que pude pagar naquela manhã, coincidentemente quando fui devolver um livro sobre automutilação, problemas mentais e suicídio que tinha pegado emprestado.
Da primeira vez que fiz, parece besteira, foi durante uma prova de física. Aqui e acolá uma sensação ruim (que eu suspeitava ser invenção da minha própria mente pra me fragilizar, me vitimizar e me isentar de quaisquer erros cometidos) me assolava. O combo contava com uma súbita vontade de arrancar os cabelos, palpitação no peito, mãos inquietas, pensamentos acelerados e só cessava depois de transbordar pelos meus olhos. É claro que eu não sabia disso tudo na época, foi no começo do ensino médio e até então eu não era muito boa em prestar atenção no que o meu corpo dizia - nem sentia. A apatia me controlava e tudo o que não coubesse nela era voltado contra mim.
Ela não me deixava comer, não me permitia gostar de mim mesma, não era aberta a amizades, não acreditava em nada, e me dizia que ela não era real, só algo que inventei pra usar como desculpa pra tudo. Ela tá aqui fazendo isso enquanto escrevo, mas agora não é mesmo tão real assim.
Eu não sabia o que eu estava sentindo, só percebia os extremos e me sobrecarregava de repente. Sem saber o porquê, também. O impulso era o de trocar a dor interna pela externa, que é muito mais suportável.
Da última vez, fiz tantos mini-cortes no mesmo lugar que eles se uniram numa ferida só, e apesar de eu sempre ter tomado o cuidado de não deixar marcas visíveis, essa ficou - e muito grotesca. A parede levava a culpa sempre que alguém notava e perguntava. Sabe como é, eu sempre ando pelas calçadas arrastando a mão na parede das casas e infelizmente me rasguei um pouco naquelas que a tinta tem uma textura pontura. Em que parede foi isso? Não lembro, foi voltando do trabalho, mas por quê eu mentiria sobre um acidente bobo desses? Nem faz sentido. Me machuquei sem querer, é sério, só isso.
Assim convenci minha família e meu namorado de que não fora proposital. Arranquei o cascão umas duas vezes ainda, mas não escondia o horror da carne-viva, deixava à mostra pra que não parecesse auto infringindo. Menti tanto que quase acreditei na história.
Ninguém sabe que eu me cortava. Nem eu admito isso pra mim mesma, não era nada demais, não tenho cicatrizes aparentes, sinto como se estivesse me apropriando de um problema real que muita gente enfrenta, enquanto sou só uma menina fraca arrumando motivo pra softer. Costumo pensar que eu não me corto de verdade, entende? Porra, conheço uma menina toda fodida de golpes pelos braços, antigos e recentes, por baixo e por cima das tatuagens, finos, grossos, horizontais e verticais. Quem eu penso que sou pra falar disso?
Agora, um pouco mais crescida, sei que isso não existe. Machucar o próprio corpo "intencionalmente" não é normal, nenhuma forma de autodestruição é natural. Beliscões, tapas, arranhões, puxões de cabelo, tudo isso é prejudicial apesar de parecer eficaz. O nível do dano não mede necessariamente a dor que estimulou alguém a tomar essa decisão. É desespero. É a última alternativa.
Você se corta?
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Que eu morra antes
Non-FictionEscrevo coisas desagradáveis e difíceis de se falar e se ler. Talvez seja melhor ler.