A Garota

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Monte Santo, interior da Serra Catarinense em algum ponto da nossa tão desnorteada linha do tempo


"São do seu jardim", avisou Maria Isabel, depositando o maço de flores no jazigo da mãe.

O silêncio ecoou noite adentro, enquanto Maria Isabel punha reticências à sua fala, como se esperasse por uma resposta que nunca viria.

"As margaridas não parecem mais as mesmas, tadinhas. Até os crisântemos andam estranhos, sem cor e meio tristes. Eu tento cuidar delas, sabe?", com um sorriso torto, ela encarou o jazigo, pensando em como devia ser triste para uma pessoa chegar ao fim da corrida e parar em uma cova a sete palmos do chão, servindo de companhia aos vermes, "Mas para algumas coisas você precisa de dom, talento, e definitivamente não nasci para a jardinagem"

Com o pé, a menina varreu algumas folhas secas do chão de terra batida e sentou-se ali mesmo, pertinho do túmulo. A maioria tinha medo de entrar em um cemitério à noite, mas Mabel gostava daquele lugar: era quieto, longe do mundo e tudo que rompia o silêncio era o cri-cri-cri dos grilos e o coaxar dos sapos. Estar ali, a fazia sentir-se mais próxima de sua mãe e lhe permitia despedir-se dela aos pouquinhos.

A morte dói mais se for à vista, então prefiro parcelar, repetia para si mesma, antes de subir o morro do cemitério.

"Eu quase vim ontem, mas estava muito cansada. Acho que você não vai se importar se eu falhar um diazinho né?", desculpou-se com uma piscadela, "Tá bem difícil aqui embaixo, mamãe. Desde aquela noite, o papai mal fala comigo e quando o faz, parece conversar mais consigo mesmo do que com a filha"

Entre suspiros, uma luz forte irrompeu à sua frente, levando Mabel de volta àquela noite.

O coro de ruídos que precedeu o vazio  retornou como um estrondo à sua mente: som de freio cantando, pneus raspando no asfalto rígido, o atrito fazendo um barulho esquisito, metal batendo contra metal, o vento se dobrando ao meio, enquanto tudo ao redor virava um breu, o vazio para onde as pessoas vão quando perdem a consciência.

Uma série de eventos que se misturam e chegam à sua mente fora de ordem ou sentido.

Mamãe, cadê você?, lembrava-se de ter perguntado ao vazio, mas este não lhe deu qualquer resposta.

Mabel balançou a cabeça, tentando espantar os fantasmas daquela noite.

"Na janta, nem parece que eu tô lá, já pensou num negócio desses?", de dentro da bolsa, Maria Isabel fisgou um maço de cigarros já começado, "Mas você sabe que não foi, tipo, culpa da nossa briga não é? Quem mandou aquele merda cortar a nossa frente"

Meio sem jeito, pinçou um cigarro do maço e o meteu entre os lábios.

"Qual é, não vai bancar a moralista comigo. Você nunca foi esse tipo de mãe. E outra, eu peguei isso das suas coisas, sabia?"

Mabel deu a primeira tragada, com uma careta de asco.

"Nossa, esse troço é uma merda, mas eu não consigo largar", resmungou entre uma tragada e outra, "Por que você teve que ir tão cedo? A gente nem teve tempo de conversar sobre amor, sexo e essas drogas que as filhas conversam com as mães quando ficam mais velhas. O vovô e a vovó se foram cedo demais, agora você me abandona também. Acho isso muito injusto. Não é como se eu estivesse te culpando ou algo assim, é mais um protesto contra o universo, os deuses ou quem quer que tenha te tirado de mim, quem quer que tenha escrito essa piada de mau gosto, chamada morte"

"Por que um negócio que faz tão mal vicia desse jeito?", perguntou-se, observando a fumaça que subia ao céu em espirais cancerígenas, "Nunca vi uma verdura ou uma fruta causar dependência igual cigarro, se assim fosse talvez a gente vivesse mais. Bom, quem sabe a indústria do tabaco seja mais rentável que a de hortaliças"

"Lembra de como, nos desenhos antigos os personagens fumavam, bebiam e ostentavam armas de fogo indiscriminadamente?", continuou, "Nunca mais vamos ver esse tipo de desenho sendo passado para uma criança - o que muitas pessoas chamariam de 'lacração', mas que talvez seja apenas bom senso"

Maria Isabel tragou mais um pouco o cigarro, enquanto observava a extensão do firmamento.

Lá em cima, pontinhos brilhavam em uma imensidão abissal, alegres consigo mesmos, alheios à vida ao seu redor.
Será que as estrelas têm sentimentos, será que elas têm medo igual a mim?
Ou são apenas nacos de existência, astros distantes, alheios à futilidades humanas como dor, luto ou medo?

"Como é aí em cima? Às vezes eu me pego pensando sobre o que vem depois, mas nunca consigo chegar a uma resposta satisfatória. Talvez tudo seja mais sem graça do que a gente imagina. Morremos e puff, acabou o espetáculo, as cortinas são baixadas, sem o devido clímax ou o desfecho do arco do personagem. Sabe o que me parece? É como se a vida fosse um roteiro mal escrito, não é a jornada do herói invencível, mas sim uma tragédia grega onde todos se ferram no final. Isso faz sentido pra você?"

O tempo devorou a noite, ao passo que o cigarro queimava até tornar-se uma minúscula bituca. Mabel cuspiu a xepa na grama rala do cemitério e pisou com força para extinguir o resquício de fogo que ainda insistia em queimar a seda.

Eriçando os ouvidos, conseguiu ouvir o tênue som de passos, esmagando a grama úmida de orvalho ali perto.

Alguém se aproximava do cemitério.

Dor CrônicaOnde histórias criam vida. Descubra agora