A Senhora

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Quando o Zé chegou em casa, o Sol já se espreguiçava e limpava a areia dos olhos, lutando para sair de trás das montanhas.

O calor do fogão à lenha vinha em parcelas até o coveiro, enquanto ele cruzava os corredores no rumo da cozinha. Junto do calor, um perfume de capim cidreira se espalhava pelo casarão, pontuado por toques amendoados.

A senhora havia chegado.

Na cozinha, ela segurava duas xícaras fumegantes.

"Passei um café, enquanto você estava lá em cima"

"Bom demais", comemorou o Zé, esfregando as mãos em cima da chapa do fogão, "Esse frio pede um cafezinho mesmo"

Pegando uma das xícaras, o coveiro sentou-se à mesa, contemplando a beleza daquela mulher, que sempre o espantava.
Parecia uma divindade esculpida em ébano, coroada por uma volumosa cabeleira nevada que lhe caía pelos ombros nus. Mesmo com o clima austero da Serra Catarinense, a senhora trajava apenas um vestidinho branco, ombro a ombro com decote em V. Nunca ia lhe entrar na cabeça que ela não sentia frio.

"Então, como foi?", perguntou-lhe, encarando-o com aqueles profundos olhos cor-de-lua-cheia.

"Ela me fez quase as mesmas perguntas da última vez, com poucos desvios", suspirou o coveiro, "Quanto tempo mais até ela entender?"

A senhora aquiesceu. Certamente já havia escutado aquela pergunta algumas centenas de vezes em tantos séculos de vida.

"Varia de pessoa para pessoa. Aqueles que temem a passagem, como Maria Isabel, encontram maior dificuldade"

"Bom, eu entendo o lado dela. É difícil pular em um abismo sem ver o fundo"

"Pode parecer que eu não tenho empatia, meu amigo, mas eu já fui humana e consigo me colocar ao lado de alguém que teme o desconhecido. Mas Maria Isabel precisa entender por si própria, que não pertence mais a este mundo. Nosso papel, mais seu do que meu na verdade, é apenas ajudá-la a chegar à verdade"

"Essas conversas com Maria Isabel me fizeram pensar em algo"

"Aposentadoria?", retrucou a mulher, com um sorriso oblíquo.

"Em qual é o sentido da vida"

Tomando o último gole do café, a senhora levantou-se e estendeu a mão para o coveiro.

"Dê-me a sua mão"

"Ei, não vai me levar para o além, né? Ainda está muito cedo"

"Apenas confie em mim, Zé das Almas"

Mesmo ressabiado, o coveiro estendeu as mãos. Durante todos aqueles anos juntos, aprendera a nutrir um cadinho de confiança em relação à senhora.

Com um repelão o chão sumiu e os dois caíram no vazio. O Zé sentiu a vertigem de despencar no vácuo, o peso de cair rumo ao desconhecido zumbindo em seus ouvidos. Não sabia direito onde era em cima ou embaixo, ou melhor, se esses conceitos ainda existiam.

Divisou um halo luminoso que foi aumentando gradativamente de tamanho e, quando deu por si, já o haviam atravessado e despencando em uma extensa câmara cheia de estantes.

O coveiro sentiu-se pequeno em meio àquele manancial infindo de conhecimento,  todos aqueles andares repletos de livros, desde tábulas de pedra, até rolos de papiro, exemplares de papel e livros digitais.

"Misericórdia! Que lugar é esse?"

"Essa é a Biblioteca das Não Realizações", revelou a senhora, abrindo os braços.

"É um péssimo nome"

"Não sou eu quem define os nomes, Zé", retrucou ela, olhando de esguelha para o coveiro, "Esse é outro departamento. Aqui ficam as ideias e futuros interrompidos"

"Um cemitério de porvires"

"Eu não teria definido melhor! Quando uma ideia nasce na cabeça de uma pessoa, ela tem dois caminhos possíveis: germinar e dar frutos ou morrer e vir parar aqui"

"Ainda não entendi como uma ideia pode morrer"

"A ideia, meu amigo, é única e morre a partir do momento em que seu criador a negligencia. Suponha que você tenha a ideia de uma história ou de uma música que pode mudar o mundo, mas você simplesmente a ignora, pois acha que não é bom o suficiente para seguir com ela. A ideia morreu ali, nesse exato instante"

"Entendi. Mas o que isso tem a ver com o sentido da vida?"

"Tem tudo a ver! Eu citei o exemplo da arte, das ideias, mas esse local se estende à um escopo muito maior. Coisas a fazer, pessoas a amar, tudo isso deixa uma marca. Caso você opte por ignorar tais desejos e pensamentos, eles são enviados para este local, para morrer sob a poeira do esquecimento"

"Há um grau de beleza em deixar um legado para aqueles que vêm depois"

"Esse é o segredo. Imagina se os escritores e artistas parassem de criar a partir do momento que percebessem que a vida é finita, que um dia a morte vai chegar para eles e que de nada adianta fazer algo, se logo tudo terá um fim. Aquilo que fazemos hoje reverbera pela eternidade. Deixe seu legado e seu nome ecoará pelos mares infinitos do tempo"

"Eu só tenho pena da menina, Maria Isabel, que morreu cedo demais e não teve a oportunidade de marcar seu nome na história"

"Como você pode ter tanta certeza?"

"Qual o legado de uma menina de 14 anos que morreu num acidente de carro?"

"Em algum lugar, algum ponto da nossa tão desnorteada linha do tempo, na teia do multiverso, alguém está escrevendo a história de Mabel, nem que seja uma pequena parte dela, tenha certeza disso, Zé, a existência é infinitamente vasta!"

Dor CrônicaOnde histórias criam vida. Descubra agora