O velho homem no café

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  Nunca tive nenhum interesse especial em trabalhar em um café. Para ser sincero, nunca pensei muito em onde trabalharia. Nem mesmo sinto nada em particular pelo café. Pessoalmente, evito tomá-lo. Já sinto dificuldade suficiente para dormir. Mesmo assim, no começo da minha vida adulta, me vi em uma situação em que eu realmente precisava de dinheiro. A faculdade não despertava meu interesse, e não tinha nenhuma ambição. Então, aceitei o primeiro trabalho que me foi oferecido, o café. 


  Não é um trabalho particularmente difícil. Os clientes entram, eu os atendo... Nenhum mistério. Nada de interessante. De tempos em tempos, alguém me pede uma recomendação. Não sendo um consumidor de café, a minha opinião não vale de quase nada, então eu costumo recomendar o mais barato. As pessoas tendem a questionar menos quando veem que a minha recomendação é a que os faça gastar menos. Isso me protege de qualquer conversa estendida.


  O café fica em um pequeno município no interior do estado do Rio de Janeiro, na região serrana. Se você já esteve por lá, provavelmente já consegue imaginar o tipo de vida que eu levo. Acordo cedo para passar o dia no trabalho. Todos por aqui são assim. Talvez seja por esse motivo que o café esteja sempre tão vazio. Ainda assim, temos os nossos cidadãos aposentados. Eles movimentam o comércio local. Sejam pessoas que passaram a vida toda por aqui, ou idosos que resolveram passar seus últimos anos em um sítio ou casebre em um local tranquilo como esse.


  Por mais que eu não me sinta confortável expondo minha vida pessoal, os clientes tendem a conversar bastante. Me contam histórias sobre suas vidas, suas famílias, seus sítios... Eu não me interesso nem um pouco. Mas, ainda assim, sempre empresto meus ouvidos a cada um que precise compartilhar algo. Porém, tem um cliente com o qual considero ter uma relação interessante. É um senhor corpulento, cabelos e barba grisalha. Nunca me disse seu nome, nem eu o meu. Mas ele torna o meu expediente um pouco mais interessante.


  Todas as manhãs, ele sobe uma pequena escadaria que vem do riacho que cruza a cidade, eu consigo ver sua boina aparecendo enquanto ele faz seus passos, depois sua cabeça, onde seu rosto mostra sempre um sorriso, e, então, o resto de seu corpo. O riacho fica a uns quinze metros abaixo do nível da rua principal, onde o café se encontra, e esse senhor parecia subir os degraus com mais facilidade do que qualquer outro idoso das redondezas. Talvez até mais tranquilamente do que eu. 


  Nossa interação é bem simples: Ele se aproxima do café, estranhamente sempre em um momento mais movimentado do dia, mesmo que sejam apenas outros dois ou três clientes. Ele entra pela porta, cumprimentando cada freguês com cortesia, e recebendo cumprimentos de todos em retribuição. Nunca ouvi ninguém mencioná-lo ou cumprimentá-lo por nome, mas isso nunca me incomodou. Ele toma seu lugar na fila, e admira a decoração do local, sempre como se fosse a primeira vez que ele houvesse entrado, e aguarda pacientemente a sua vez. 


  Quando chega a sua vez, ele me cumprimenta mais uma vez. Muitas vezes eu pensei no motivo de cumprimentar duas vezes, mas hoje eu entendo perfeitamente a cortesia de reservar um "bom dia" especial para mim. E sempre retribuo. Ele então me faz uma charada, e, apenas após eu resolver a dita charada, ele faz o seu pedido, senta-se à mesa próxima à janela, e toma seu café, observando o verde que cerca o riacho. É realmente uma vista pacífica. 


  Umas semanas atrás, o homem apareceu, como de costume. Ele seguiu sua tradição, cumprimentando todo o recinto, e coletando de volta o cumprimento de todos presentes. Aguardou seu lugar na fila, até que chegasse frente à mim. 


  "Bom dia" - Disse. E eu logo devolvi a cortesia com meu próprio. 


  "Eu falo, mas não tenho boca. Eu ouço, mas não tenho ouvidos. Não tenho corpo, mas vivo com o vento. Que sou eu?" -Ele perguntou, sem rodeios. 


  Trabalho neste café há alguns anos, e há alguns anos sou visitado pelo senhor. Em todo esse tempo, sempre fui capaz de responder às charadas, mesmo que algumas me tomassem mais tempo do que outras. No entanto, essa questão me levou a um beco sem saída na minha mente. Eu realmente não conseguia imaginar a resposta. 


  "Peço desculpas, senhor." -Eu disse, derrotado. "Eu não faço a menor ideia."


  O homem virou as costas, não fez seu pedido, não tomou seu café, não admirou a paisagem. Ele apenas seguiu seu caminho através da porta, e desceu as escadas que subira momentos antes. Eu fiquei confuso. Sempre soube que as charadas eram importantes para ele, mas nunca imaginei que isso aconteceria caso não fosse capaz de responder uma. 


  Ele passou alguns dias sem comparecer, e isso tornou meu trabalho muito mais tedioso. No entanto, eu o aguardava diariamente para o nosso pequeno hábito. Sentia falta dele. Mas isso não durou muito, pois tive a alegria de avistar sua boina, subindo calmamente pela escadaria. 


  Algo parecia diferente, no entanto. Seu sorriso não estava presente. O homem andava mais vagarosamente do que o normal. Ao atravessar a porta, cumprimentou todos em um tom caído. E, ao aguardar na fila, olhava fixamente para frente.  Até que chegou sua vez, e o homem me olhou nos olhos, sem dizer uma palavra. 


  "Sinto muito pela charada, senhor." -Eu disse, prontamente. "O senhor finalmente me venceu."

  "Como posso ter vencido, rapaz?" -Ele disse, triste. "Se minha dúvida não terá resposta."

  Eu não entendi o que ele quis dizer com isso. Não é comum se fazer uma charada, se já não se sabe a solução. 

  "Eu tenho certeza que podemos encontrar a resposta." -Eu disse, sorrindo, para alegrar o homem. 

  "Sim, jovem." -Ele respondeu, finalmente tornando livre o seu costumeiro sorriso. "Creio que esteja certo."


  Ele então virou suas costas, gargalhando baixo. Seus passos o levaram pelo caminho de sempre, pela porta, pela rua, pelas escadas. Fiquei feliz em vê-lo novamente, e feliz por vê-lo contente.


  Meu turno seguiu normalmente, até o céu se alaranjar, com o pôr do sol. Eu me preparei para fechar o café, guardando tudo, limpando o local... Eu estava pronto para trancar a porta, quando a boina emergiu novamente. Nunca aconteceu de eu vê-lo duas vezes no mesmo dia, também nunca o vi à noite. Eu adiei o fechamento da loja, para ver o que o homem queria. Ele entrou pela porta, e me desejou uma boa noite, o que eu reciproquei. O homem admirou o local, como sempre fazia, e parou em frente ao balcão. 

  "O senhor vai querer o seu café agora?" -Perguntei, ligando novamente a cafeteira. Por sorte, o homem tomava um café preto, do mais simples de se preparar. 

  "Faça um para você também." -Ele disse. "Tomaremos no caminho."


  Eu não lembro bem do que aconteceu em seguida. Apenas de descer a escadaria, pisar nas pedras húmidas, banhadas pelo riacho, e sentir as folhas acariciando o meu rosto, enquanto nosso caminho seguia pela floresta. 


  Não sei ao certo onde estou agora, mas tudo me parece borrado. Não tenho certeza se estou acordado ou sonhando. Mas não sinto medo, pois estou acompanhado. Após alguns dias caminhando, encontramos a resposta. 


"Eu falo, mas não tenho boca. Eu ouço, mas não tenho ouvidos. Não tenho corpo, mas vivo com o vento. Que sou eu?" 

  É claro que a resposta seria "O Eco".

   


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⏰ Última atualização: Sep 28, 2023 ⏰

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