II

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Aquele homem emanava uma energia clandestina.
Conheci-o numa das noites em que fugia da abulia do mundo, pelo escuro, e ia para o telhado de uns apartamentos altos da cidade – olhar para o céu e observar a vida. O típico comum, não vos parece?
Era uma sexta feira, se bem me recordo. O clima estava suportável (bom para quem planeava sair à noite, ótimo para os que celebravam o silêncio), de tal forma que não senti necessidade de levar o típico cobertor para o telhado.
Esse estranho carrancudo homem apareceu lá - atrevo-me a dizer - do nada. Até então aquele costumava ser o meu cantinho em que, por vezes, apenas um casal ou outro ia lá ver as estrelas ou miúdos fumar erva com os amigos. Outras vezes estava lá o senhor que limpava o telhado a fazer o seu turno noturno e igualmente a controlar esses mesmos miúdos que iam para lá fumar ilicitamente.
Esse senhor, simpático e paternal, perguntava-me sempre se estava bem e desejava sempre uma boa noite. Provavelmente porque não sabia quem eu era. No escuro eu podia ser eu própria, que ninguém me reconhecia.
Contudo, aquele homem jamais havia visto no telhado dos apartamentos do sol - eram assim chamados pela razão de que se viam os mais bonitos nasceres e pôres do sol das varandas dos apartamentos. E principalmente do telhado. Mas muito poucos sabiam disso. E ainda bem.
Na noite em que vi o homem pela primeira vez, o meu humor não estava minimamente acessível para fluir na convivência com quem quer que fosse. Por essa razão, permaneci calada a maior parte do tempo.
Ele começou a dirigir-se a mim e eu instintivamente agarrei o meu telemóvel e as minhas chaves de casa, aprontando-me para fugir o mais rápido possível se fosse necessário. Ele, calmamente, sentou-se ao meu lado. Eu afastei-me um pouco e esperei por alguma reação do seu lado. Sentiu-se um silêncio incomodativo. "Estás a ver aqueles vidros?". Não me afastei, consentindo em ouvir a sua conversa. "São tão diferentes de nós. Os objetos são tão diferentes de nós". Não estava a perceber o motivo de ele mencionar aquele assunto, principalmente sendo algo tão óbvio. "É óbvio não é? Somos humanos, os objetos não se igualam a nós. Passam a vida ali, a enferrujar com a chuva e com o sol. A serem pisados por nós que, se fôssemos presos e imovéis como eles, enlouqueceríamos". O homem até que tinha a sua certa razão, mas desencadear este assunto estúpido com uma miúda desconhecida e nova às quatro da manhã, não me estava a agradar muito. A minha disposição não estava nem impassível nem emotiva. "A questão é... alguns de nós, ao padecer por sentir, fingimos ser objetos, de ferro, de maneira a enfrentar a realidade com um caráter soberano. Na verdade, precisamos uns dos outros, de sentir, de rir, de chorar. Precisamos das emoções para sobreviver". De onde raio veio este velho? E porque é que me escolheu para chatear hoje? Devia ser um professor de filosofia recentemente despedido pensei eu, descartando, orgulhosamente, os seus argumentos. "Fingimo-nos objetos, apesar de nem termos a capacidade para fingir como achamos ter. Porquê debater contra o prodígio que somos?". Levantou-se, acendeu um cigarro. "Boa noite". Demorei alguns segundos a responder-lhe "Igualmente". Pensei mais na sua afirmação do que na preocupação em ser bem educada.
Não tinha percebido minimamente a intenção daquele homem. Fiquei assustada porque ao fim ao cabo era um desconhecido a falar com uma miúda de dezassete anos. E ao mesmo tempo intrigada. Não será novidade daqui para a frente que eu gosto de perigo e adrenalina.
Semanalmente ele aparecia por lá, sempre com uma conversa diferente, porém com uma conclusão semelhante às outras. A importância das emoções, reações psico e físicas.
Até ao momento, mantinha-me sempre calada. Apenas o ouvia a monologar. No entanto, certa noite, com a cabeça cheia de tudo, pedi-lhe que não me chateasse, que me deixasse em paz e parasse de aparecer no telhado, que antes era maioritariamente meu. Escolhi a solidão e mandei-lhe contar as estrelas do céu.
Os meus pais tinham discutido novamente quando cheguei a casa da escola nesse dia. E, novamente, fingiram que nada se estava a passar tentando esconder-me a podre realidade do seu casamento. Estava farta que me tentassem ocultar algo visível como se eu fosse uma criança. Instantaneamente, saí de casa assim que os vi se calarem com a minha chegada.
Três dias após essa minha atitude perante o homem, voltei a vê-lo no telhado, mas dessa vez não veio para ao pé de mim. Com o passar do tempo, isso tornou-se regular. Ficava a fumar o seu cigarro e a olhar para a cidade no outro canto do telhado, ignorando a minha presença lá. No entanto, dado que o ser humano sente a necessidade de recorrer ao que magoou à custa do remorso, levantei-me do meu banco habitual e fui sentar-me ao seu lado.
De vestimentas velhas porém quentes e conservadoras, rugas de clara tristeza, um colar com um pendente de uma cruz suspenso, pisando já os seus quarenta anos, o homem pegou num isqueiro e acendeu o charro. "Contei as estrelas no outro dia, vi vinte e sete mas o que eu vejo é cego, comparado com o que sinto." Ri-me. "Não se cansa dessa conversa, pois não?" "Há coisas que não mudam.", respondeu. "Pode mudá-las, se quiser" contrariei eu. "Posso, mas porquê mudar algo que te faz sentir bem?".
Calámo-nos por uns minutos. Um momento de desconforto entravou-se devido ao silêncio.
"Posso fazer-lhe uma pergunta?". "Não", respondeu ele a seco. "Desculpe, mas não percebo o motivo porque não." "Porque eu sei qual é. Não, naquela noite, não fui roubar-te apenas tempo. Impulsionei-me a fazê-lo e fiz". "Mas quem é você? Conhece-me de algum lado?". "Não, sou só um simples homem."
Levantou-se, acendeu um cigarro, logo após ter mandado o charro para o chão e: "Boa noite". "Espere! Mas porque é que..."."Disse que não podias fazer-me nenhuma pergunta. Boa noite."
Encostei as costas à parede, depois de um movimento frustrado e tentei recordar-me de tudo desde o princípio. Comecei a pôr tudo em perspetiva. Estava tão confusa como curiosa. Interessei-me pela conversa ridícula e persuasiva de um homem que tinha idade para ser meu pai, e comecei a ignorar o facto de ele ser completamente desconhecido.
Ser rejeitado realmente mexe com o nosso ego e eu desacreditei que ele realmente parasse de me chatear quando lhe mandei embora há semanas atrás. Comecei a sentir a falta daquela presença, das palavras que interiormente gozava e refletia. Apareci mais vezes no telhado, mas ele nunca mais tinha lá voltado.

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⏰ Última atualização: Mar 18 ⏰

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