No vai e vem das ondas, coloco-me em oração, mas não há deus no céu que me possa escutar. Depois de ir a pique o navio, fiquei a deriva no no mar. Preso numa eterna bonança, que a lugar nenhum me leva. A sede a fome me consomem até os ossos e o Sol sobre minha cabeça parece cada dia maior. Sou prisioneiro da imensidão do oceano. Arrependido de ter partido da costa, choro. Já é o quarto dia de naufrágio. Para passar o tempo começo a cantarolar cantigas de amor, meu peito aperta, pois sempre fui sozinho e agora mais que nunca estava sem ninguém. Já não sinto minhas pernas, imersas que estavam nas águas, todo resto do corpo me doe, inclusive a cabeça, que lateja, lateja. Miserável é a condição humana. Somos o pó das estrelas. E pensar que destemido tomei lugar ao navio Pneuma em busca da Joia de Salomão. Na tempestade obscura, vi meus companheiros marujos serem tragados por Caríbdis, o monstro-redemoinho, que a todos levou para suas entranhas, deixando-me aqui na agonia.
Mentalmente débil pela insolação, vejo uma sereia descendo dos céus em minha direção, suas asas são de um verde metálico e sua pele morena como a de Abraão. É bela e viril, fosse eu cristão diria ser um anjo querubim. Pousando sobre a tábua em que me agarro, não move-a um cubículo, tamanha sua leveza. Olho-a nos olhos sentindo paixão e terror. Abraços seus pés, desesperado:
— Misericórdia, misericórdia! — clamo quase sem voz — Tira-me deste inferno, liberta-me desta prisão.
Dou-lhe um beijo com reverência e meu corpo se estremece por inteiro. Ela é a tentação, a doçura do desejo. Sinto o gozo das orgias, minha semente se espalha no mar. Mais forte que a fome, a sede, a dor, mais forte que o mundo é o feitiço da paixão. Em êxtase profundo ela se desmancha em prata. Já é noite e a Lua brilha. Quando tempo durou tal visão? Uma brisa de verão sopra do oriente, as águas se movem, em fluxo, em corrente. Botos fluorescentes emergem das profundezas, eles cantam e dançam me fazendo companhia. Me pergunto que força regente compadeceu-se de mim, mas é a própria Essência, me libertando do fim.
Um navio me espera há alguns nós de distância, ouço gritos, gargalhas, barulho de música. Já não estou mais no mundo, estou em transe. Sou recolhido ao deque por um sujeito bonachão, de barbas brancas e barriga obtusa, cheira a cravo e alecrim, além de rum. Suas mãos são aveludadas, e me seguram com afeto:
— Pelas barbas do profeta, como estás moribundo! — só então percebo ser o velho um homem do deserto, árabe ou persa, não consigo distinguir. — Neste baile todos usam máscaras, e tu, como nosso convidado de honra, não pode se eximir, mesmo que não goste de roupas, — me vejo nu — teu rosto tem de estar coberto.
Dando-me uma carranca de demônio, o velho me joga para dentro de um salão. Cobrindo minhas partes sou lançado de lá para cá, os comensais me saúdam e me chamam para dançar. Sento-me numa mesa ao fundo onde encontro a sereia vestida como marujo. Encaro-a assutado e confuso, ela sorri e pega em minha mão:
— Meu nome é Ezequiel, bem vindo ao navio Luxúria.
***
Na proa do navio, a sós com Ezequiel, já não sinto vergonha, apesar de despido. O céu estrelado enche-me de vigor, toco seus lábios com fervor. Ele tira a camisa e o colete, vendo seu dorso hercúleo, sinto-me inferior. Não tem pelos no corpo, nem sombra de cicatriz, éperfeito e admirável, como me sinto afortunado. Depois de descalçar os sapatos coloca seus pés sobre os meus, abre suas asas e me ergue aos céus. Ao nos comtrapormos ante o limiar do firmamento ele me beija, veste-me de nuvens. Quando volto para o salão, já não há mais alegria, todos passam mal e se estiram sobre o chão e as mesas. Eu que sempre estive sóbrio, invejo a embriaguês dos comensais. Não se deve passar pela vida sem pecar por excesso de prazer:
— Por que estavas náufragado no mar? — Me pergunta Ezequiel.
Depois de pensar um pouco, por estranhamente ter esquecido a resposta, digo:
— Lacei-me ao mar, atrás da Joia de Salomão, rumavamos eu e meus companheiros à Jerusalém do Céus, que segundo dizem os sábios fica ao Sul das Ilhas Pardais, quando uma tempestade levou-nos a pique. — Choro angustiado.
Ela me abraça e me consola exaltando minha bravura. O velho bonachão entra cantarolando e debochando de mim, fico irritado:
— Não seja tão tolo, meu jovem, não se chega pelo mar à Cidade dos Eleitos, nem por terra ou pelo céu, muito é o que se perde e pouco o que se ganha, melhor voltar pra casa, pro quarto, pra cama!
— Filho da puta, maldito seja! Quem és tu pra me orientar, acaso pedi-te conselho, tu és um velho bonachão, nada sabes sobre a Joia de Salomão!
Com um terno sorriso no rosto, o velho pergunta:
— Lembra da máscara que outrora te dei? Já não a sentes pesar em teu rosto. Estás fundido ao que aos outros parece, essa é a causa do teu desgosto. —Tocando a face sinto minha pele. Num choque súbito estremeço. O homem tinha mesmo razão — Hoje velho sou bom vivan, mas já fui aventureiro, cruzei terras e continentes, depois de muito caminhar Ela veio até mim, com todo Seu explendor, tinhas torres e cristais e grifos a circumfazer suas muralhas. Que visão magnanima, que dádiva gentil, Suas pedras eram de azul celeste, celeste da cor de anil.
Encho-me de encanto, por ver um Salomista, mal posso crer ser gente tão comum. Vira-me a cabeça ao avesso, mal consigo raciocinar. Dera-me ele a máscara, primeira tarefa para a joia alcançar.
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Hierosolyma Hodos - O Caminho da Plena Essência
SpiritualitéHá coisas que não podem ser explicadas, apenas compreendidas. Hierosolyma Hodos não é um livro de ficção apesar de ter aparência de uma história de fantasia. O livro narra de forma simbólica minha trajetória pelo caminho (hodos) dos mistérios até a...