Banho de dentro para fora

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Ramiro saiu disparado do quarto e abriu a porta dos fundos pela metade. Um barulho chamou-lhe a atenção e ele olhou para trás. Viu apenas o corredor que ia pro bar, mas mesmo não havendo nada sob aquela luz branda, jurou ter sentido uma presença, e sabia que sua intuição não mentia nessas coisas, pois tinha anos de prática. Mesmo sozinho no seu quarto à noite ele sabia dormir com um olho aberto. Com o trabalho que ele tinha, precisava ser esperto.

Algumas vozes podiam ser ouvidas na virada do corredor em conversas sussurradas. De repente, risadas, e o clima barulhento de falas altas voltou.

Tudo parecia normal.

Kelvin tinha dado um basta no gringo afeminado e no resto; não seriam loucos de voltar para a porta de seu quarto, e com certeza haviam coisas mais interessantes que eles podiam fazer além de ficar fuxicando por ali. Tinham muitas fantasias sobre Nova York e sobre a possibilidade de as garotas aparecerem em algum clipe de Oddy King e Kelvin Star para ocupar a noite. Mas mesmo assim...

Ramiro andou silenciosamente até certa parte do corredor, próximo de onde a parede se dobrava e dava para outra sala. Engoliu a saliva, na certeza de encontrar alguém ali, mas parou no meio do caminho. Titubeou por alguns segundos e desistiu, voltando ao seu caminho anterior e saindo pelos fundos do bar.

Lá fora, foi assolado pelo som irritante da orgia de grilos e os mosquitos no seu rosto. Felizmente não ficou ouvindo por muito tempo, pois logo em seguida entrou em seu carro, prontamente ligando o motor e saindo dali.

O caminho de volta para casa não era longo, mas ele desejou que fosse. Sua mente estava um silêncio ensurdecedor, focado só no volante, na marcha e na estrada de terra. Queria continuar assim, sem nenhum pensamento na cabeça e agindo no automático, mas seus nervos estavam aflorando, e sabia que, assim que não tivesse mais nada para fazer; assim que o propósito de dirigir para casa e deitar tivesse sido concluído, seus pensamentos iriam correr soltos, e não estava preparado para ouvir o que eles tinham a dizer. Dirigiu, portanto, em círculos pela cidade, vendo alguns bares abertos, outros fechando. Um fumante de roupa escura andando sozinho na calçada. Um grupo de jovens que riam alto e vestia roupas chamativas e curtas. O céu sem nuvens, o vento parado.

Depois de um tempo, estacionou na beira da calçada de frente a um bar de esquina, com cadeiras vermelhas de plástico e sem música. Na rua oposta ao bar havia uma loja fechada, e na parede estava um homem cambaleante, que estava se apoiando na tentativa de se levantar, visivelmente lascado de bêbado.

Ramiro, na sua necessidade de não voltar para casa e encarar seus pensamentos, resolveu fazer uma boa ação. Por que não? Era bom dar uma variada de vez em quando. Num último gesto antes de descer do carro ele olhou para o céu e sussurrou para Nossa Senhora Aparecida, "Espero que a Senhora veja essa minha boa ação e ignore o resto. Ou melhor, ignore tudo, tem umas coisas que eu prefiro que a senhora não veja... E também a Senhora é muito ocupada, tem muita criancinha passando fome por aí e é melhor ocê não me dar atenção até o dia do meu leito de morte, pra perdoar meus pecados e me levar embora em paz... amém."

Saiu do carro e fechou a porta, se aproximando daquele pobre diabo. Ergueu as calças e abaixou a cabeça para olhar o homem, não demorando para ficar enojado com o cheiro forte de cachaça e suor que ele exalava. Era como se o desconhecido tivesse dormido numa piscina de pinga por 5 dias. Ramiro quase desistiu da ideia, Santa Aparecida não estava olhando mesmo — assim ele esperava — mas precisava fazer alguma coisa.

"Ei. Ei! Cê precisa de carona?", disse, cutucando o outro com a ponta do pé.

O bêbado olhou para Ramiro, ou tentou, com seus olhos desfocados.

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