O Advogado e o mistério da garrafa gigante

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     Foi em uma sexta-feira de maio que aconteceu. Uma garrafa de vidro do tamanho de um prédio apareceu no meio da cidade, do dia para a noite. A população se formou envolta da tal garrafa em curiosidade e logo começaram os rumores, mas um em específico ganhou muita força e foi tomado como verdade: era obra de Deus para castigar a cidade e no fundo da garrafa, havia seu perdão.

     Os descrentes, por outro lado, desacreditavam do castigo divino e tinham outras teorias para o que poderia existir no fundo da garrafa. Alguns diziam ser rios de dinheiro, barras de ouro, outros diziam ser a cura para doenças incuráveis. Os mais românticos diziam ser a promessa de um amor verdadeiro e eterno e os mais filósofos diziam ser a resposta para existência de toda humanidade.

     Toda a cidade queria saber o que havia ao fundo da garrafa, mas ela estava cheia de um líquido que ninguém sabia o que era e não tinham a coragem de descobrir. Diziam ser venenoso, mas não havia nenhuma certeza, só sabiam que era escuro e cheirava mal. Por conta disso, o mistério da garrafa se manteve, assolando a curiosidade de todos, atraindo turistas que queriam ver a ira dos céus com os próprios olhos.

     A poucos metros de onde ficava o novo ponto turístico da cidade, vivia um advogado de meia idade. Era conhecido por todos, mas nada dele sabiam. Contratavam seus serviços, lhe davam bom dia, o chamavam de "doutor" já que seu nome era desconhecido pelos que ali viviam. O tal advogado morava sozinho, até onde se sabe. Não se via aliança em nenhuma mão e nunca se soube de uma "doutora" durante toda a vida. Quando soube da novidade que animava a cidade, o advogado não acreditou então foi ver com os próprios olhos.

     Ficou chocado! A garrafa deveria ter uns dez metros de altura, era gigante. Foi nessa ocasião que ouviu o prefeito falar que estava procurando o responsável pelo ocorrido, aquele sobre quem recaía a ira de Deus. Não pensou duas vezes, sabia que era ele. Sempre era. Foi tratar com o prefeito, agarrou-se em sua culpa.

     E de repente, o advogado que ninguém sabia o nome passou a ser relevante. Só se falava nele, as pessoas o olhavam descaradas, apontavam o dedo. Algumas diziam que era corajoso demais, outras que era o ser humano mais burro que já viram. Tinha quem dizia que era só fogo de palha, para chamar atenção. Mas todos concordavam vir dele a culpa.

     Pois então é chegado o grande dia e a cidade inteira se reuniu em volta da grande garrafa para apreciar o show. Algumas pessoas até apostaram que o advogado iria desistir, outras que iria morrer antes de chegar na metade da garrafa. O padre da matriz local logo se prostrou a rezar pela alma do pobre homem. As mães colocaram as crianças para dentro de casa para não seguirem aquele exemplo. O prefeito perguntou uma última vez se o advogado tinha certeza, não queria fazer isso, mas não podia desistir facilmente diante a exigência dos munícipes, ao passo que o advogado apenas concordou com a cabeça.

     Foi então que o espetáculo começou.

     Para que pudesse receber o perdão, a cidade pensava, deveria ele ingerir o líquido até o final, gota a gota. Então o advogado subiu até a boca da garrafa e começou a beber. Deu o primeiro gole e viu que o gosto era bom, doce e refrescante e logo tratou de beber mais um, e mais um, mais e mais. Sozinho ali, sentado na boca da gigante garrafa não conseguia ver ou ouvir ninguém lá embaixo. As pessoas eram apenas pontinhos desfocados e ruídos praticamente inaudíveis, como pequenas formigas curiosas. O silencio era bom.

     O advogado continuou bebendo o líquido, até chegar em um quarto da garrafa. Foi nesse momento que teve a primeira epifania. Ali em cima, com toda a solidão e o silencio que ali fazia, se sentia em paz. Era como se tudo aquilo que lhe afligia não existisse mais. Os dedos apontados, as noites em claro tentando salvar quem, muitas vezes, não merecia ser salvo e, no caminho, perdendo a si mesmo. Parou de beber um instante e começou a pensar sobre o quanto era, de fato, solitário em sua vida. Quanto mais pensava nisso, maior era o ímpeto de continuar a beber, começou a achar que talvez o grande segredo no fundo da garrafa fosse a promessa da partida de uma vida de solidão.

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