Nós Viemos do Paraíso

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— Boa noite, mocinha. Posso te ajudar com alguma coisa?

Foi bem isso o que Luciano me disse na primeira vez que a gente achou ele, batendo a porta do carro, andando na nossa direção. Naquele momento ele era bem diferente, usando um sobretudo marrom, barba mal-feita, óculos escuros de aviador, uma pancinha considerável. Eu e Corte-de-papel tínhamos acabado de chegar nessa monstruosa cidade chamada Dápolis, perambulando por um parque florido. Estava escuro, como sempre. As nuvens cobriam a cidade como se ela estivesse morrendo de frio.

— Tudo o que a gente quer são só respostas, senhor.

E aí ele sorriu olhando para um dos lados. — Por favor, corta o "senhor". Pode me chamar de Lu. Eu sou só um motorista particular. Vocês estão tentando ir para algum lugar em especial para achar essas "respostas" que vocês procuram? Peraí... — Apertando os olhos um pouquinho, parou para examinar nossas roupas. — Isso não são tipo, algum tipo de figurino de alguma peça, né? Vocês não parecem daqui. De onde vocês estão vindo com esse tipo de roupa?

— Essa é nossa roupa de, basicamente a vida toda. — Apontei para cima. A gente veio lá de cima. Pramítia. — Ele parecia ter relaxado seu rosto em um tipo de choque. Continuei: — A gente só quer saber que tipo de lugar é esse. Nós nem sabíamos que existiam pessoas aqui.

— Certo. Então... Olha, eu acho que tá é muito perigoso essas horas para vocês crianças andarem por aqui. Só entrem e vamos achar algum lugar para vocês passarem a noite.

Despensadamente aceitamos a carona do estranho. Afinal, era a única e primeira pessoa que havia dado um pouco de atenção para a gente. Ele inseriu um retângulo de plástico em algum tipo de aparelho e uma música estranha, lenta mas gostosa de ouvir, começou a tocar, nos estranhando um pouco porque até aquele momento não conhecíamos muito o que era aquilo. Ele notou nossa preocupação e apertou um botão para pará-la. — Não gostam muito de música, hein? Ou simplesmente não conhecem? Hein, rapidinho... Vocês ainda não me falaram seus nomes ainda. Se importam de falar ou... Quer que eu dê alguns apelidos? — Abaixou o espelho retrovisor para nos olhar.

Dada a gentileza de ter nos levado naquele carro, achei melhor falar o nome que me foi dado desde que me conheço por gente: — Brisa-Morna, senhor Lu. E ele é o Corte-de-Papel.

Ele parecia estar rindo um pouco por dentro e quase escondendo isso perfeitamente. — Tudo bem então, Brisa-Morna. Você até me poupou de te apelidar, olha só. Não sabia que Brisa é nome de gente. Devem ser mesmo de algum outro lugar longe daqui.

Dobramos uma esquina, as luzes roxas de lâmpadas de neon com caracteres estranhos piscando. — É como eu falei, senhor Lu. A gente vem de Pramítia. Um lugar bem acima de todas essas nuvens. — Ele mais uma vez fechou todo o seu semblante em resposta ao que eu falei. — Alguma coisa de errado, senhor?

Ele suspirou. — Nada, nada não. É só tipo... Esse tipo de coisa é maluca demais. Eu conheço essa montanha, mas ninguém nunca subiu lá em cima. Eu li em algum lugar que até mesmo as nuvens só podem chegar de cinco a doze mil metros de altura. Fica mais difícil de respirar quanto mais você sobe. Xomoluma tem catorze mil e oitocentos de altura. Ninguém conseguiu chegar perto do topo daquilo.

— Você parece saber bastante de montanhas e nuvens, senhor — Corte-de-Papel respondeu seriamente, a testa tensa. — Tem alguém que você conhece que escalava montanhas?

Luciano chocou um punho contra o volante. — Escuta, você tem que parar de falar disso.

O carro ficou em silêncio por alguns instantes enquanto encarávamos uma luz vermelha do semáforo. Corte inceremonialmente abriu a porta do passageiro, sem fechá-la, e começou a caminhar pelas ruas, enfrentando buzinadas frenéticas, enquanto eu tive que fechar a porta ouvindo as frustrações do Luciano perguntando-se por que Corte tinha feito aquilo, antes de estacionar o carro e caminhando com pressa atrás dele.

— Seria bom para sua saúde parar de me seguir, senhor Luciano — Corte parou em seu caminho, ainda dando as costas para nós. — E Brisa... Se você ainda pretende ficar do lado desse homem, que seja. Vou trilhar meu próprio caminho.

— Não é assim que funciona, Corte! — Arregalei os olhos, eu e Luciano parados atrás dele. — Você precisa se recompor! Nós precisamos estar juntos nessa! Pra entender de onde que vem as pessoas do--

— Isso não importa muito mais pra mim agora — Corte se voltou para trás, uma fúria séria em seu rosto, ainda que olhando para um canto. — Agora eu não quero olhar mais pra cara de nenhum de vocês. Outro dia a gente se encontra.

— Mas como...? — Eu me perguntei na minha cabeça, um pouco atônita, simplesmente permitindo com que Corte continuasse seu caminho, caminhando até eu perdê-lo de vista dobrando uma esquina.

E lá se vai a única pessoa que eu conhecia de onde eu venho que estava aqui comigo.

Eu corro atrás dele, ou...? Sabe? Eu não conseguia escolher...

Corte-de-Papel não era exatamente uma pessoa que eu conhecia muito, também. Ele era um criminoso em Pramítia. Um lugar tão belo e calmo, com uma prisão quase vazia que somente ele ocupava. E depois eu ocupei junto com ele por um tempo.

Quando nós nos conhecemos, até quando conseguimos escapar e viemos para cá, ele parecia outra pessoa. Mas eu nunca tinha visto esse lado. De alguém que não tolerava nada de ninguém. Talvez por isso ele tenha parado na cadeia. Sei lá.

No final das contas, eu acho que acabei agindo por egoísmo. Eu estava num lugar na qual era uma estranha. Luciano tinha pelo menos um meio de andar pela cidade. Não podia simplesmente agir de uma forma tão agitada e impulsiva assim.

Eu precisava de ajuda.

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⏰ Última atualização: Nov 25, 2023 ⏰

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