Nunca pensei que minha primeira batida de carro aconteceria comigo sóbrio. Sempre me imaginei dirigindo por aí sendo o amigo bêbado que faz várias merdas no trânsito, mas pelo visto eu sou o responsável por um amigo bêbado que não sabe dirigir e só faz merda no trânsito.
Artur nunca me escuta quando eu dou os conselhos sensatos, e por mais que nossa amizade de sete anos tenha me dado uma base sólida de sua personalidade, me irrita ter que sempre me responsabilizar pelas atitudes infantis e imprecisas dele. Gostaria de ser uma típica dupla onde um apoia o outro e dá conselhos casuais sobre sexo, drogas e essas baboseiras, mas parece que todas as coisas que uma pessoa nunca deve fazer em nenhum caso são esquecidas pelo meu amigo semi-acordado no momento. Estávamos voltando da quarta festa da noite da nossa formatura quando eu decidi que ele já estava bêbado o bastante para continuar bebendo mais alguma coisa. Quando passamos pela casa da Rebeca, a garota mais gata da escola que definitivamente estava dando mole para ele há um bom tempo e fazendo o maior festão na noite, ele tentou virar o volante e me fazer deixa-lo lá. Minha vontade no momento realmente era esquecer o acordo que fiz com sua mãe de fazer ele ter juízo e deixar que ele tomasse as próprias escolhas da vida dele. Oras, ele já tem 18 anos, está na hora de aprender a se comportar como um homem independente. Mas contendo minha irritação eu mandei ele ficar quieto e não me atrapalhar enquanto eu dirigia, o que foi um erro horrível porque logo em seguida ele se jogou em direção ao volante e me fez derrapar da pista, batendo com o carro diretamente numa árvore. Por sorte a minha velocidade estava consideravelmente reduzida, de modo que o impacto contra a árvore só me rendeu um grande amassado na frente do carro e uma dor de cabeça terrível que nem podia se comparar a raiva que eu sentia de Artur no momento. Meu pai me deu o carro no meu aniversário de dezesseis anos e ele sabe como o veículo se tornou meu amuleto de sorte depois da morte do meu pai, mesmo nunca tendo conversado sobre isso com Artur, ele também via no carro como uma forma de lembrar do meu pai, que parecia gostar mais dele do que de mim.
– Isso não teria acontecido se você tivesse me deixado na porra da festa. – Artur bufa cambaleando na pista enquanto eu tento averiguar o estrago causado no farol que continua piscando, não parece ter conserto.
O comportamento de Artur sempre fica mais insuportável quando ele bebe, com a minha mãe também era assim até ela decidir entrar na reabilitação e voltar de lá como uma mulher nova que procura fazer as pazes com os filhos, ou melhor, comigo. Meu irmão saiu de casa há tanto tempo que me faz duvidar se ainda lembro como sua voz soa.
– Quer saber? Você que vá para o inferno, eu posso muito bem ir andando para as minhas próprias festas e não preciso de você. – Ele aponta para o que deveria ser na minha direção e na verdade é o tronco retorcido da árvore em que batemos. Sua gravata borboleta está empapada de cerveja que eu nem sei em que momento da noite foi derramada. Ele sai andando e eu tenho que realmente me segurar para não ir até lá e terminar de encharcar a gravata dele com sangue de tanta porrada que quero dar nele. Meu celular toca no bolso e eu me lembro que deveria estar ligando para um reboque ou para polícia considerando que estou cogitando matar meu melhor amigo na base do soco.
"Eiii! onde vcs estão? Todo mundo disse que vocês foram embora"
Puta que pariu, é a Anna. Eu esqueci completamente que ficamos de dar carona para ela na volta para casa. Merda merda merda, pelas suas inúmeras ligações perdidas devia ser ela quem estava me ligando enquanto eu dirigia, mas se eu tenho uma regra ela com certeza é não pegar o celular quando estiver dirigindo, não que isso tenha me impedido de bater o carro, mas tudo bem. Começo a ligar para Anna e vejo que Artur caiu desmaiado uns dois passos do lugar onde disse que iria para festa sozinho. Inacreditável.
– OI, ONDE VOCÊS ESTÃO? TENHO QUE ESTAR EM CASA ANTES DAS TRÊS! – A música do outro lado da linha está tão alta que tenho que afastar o celular do ouvido para não ter os tímpanos estourados, se não fosse por Artur eu duvido que teria participado de metade das festas e confraternizações que participei hoje, mais uma vez eu sendo babá de um marmanjo que não consegue controlar o quanto bebe.
– Oi Anna, desculpa, acabei esquecendo de que deveríamos te buscar e acabei de bater o carro, vai ser uma noite meio longa. Você consegue pedir para alguém levar você? – Mal termino de falar e ela desliga a ligação na minha cara, sim, Anna, não bati a cabeça e nem estou sangrando jogado no chão até a morte, obrigado por perguntar. O céu está escuro e eu não sei o que fazer quanto ao carro e ao Artur, eu deveria chamar algum outro amigo dele para levá-lo em casa, mas duvido que algum daqueles caras que ele chama de amigos abandonariam suas respectivas festas para ajudar o bêbado sem noção com um amigo otário para ajudar ele a todo momento. Começo a arrastar o corpo inerte mas não sem vida de Artur quando um carro branco para ao meu lado. Abandono o corpo no chão e olho para o motorista que permanece meio oculto pela sombra que a árvore estraçalhada faz.
– Está tudo bem aí? Você cometeu algum tipo de assassinato intencional ou só bateu o carro e seu companheiro morreu? – Reconheço a voz antes de conseguir ver o rosto pelo movimento de uma nuvem que libera um pouco da luz da lua. É a Juliana, a garota da biblioteca. Me sinto um idiota parado assim, meu cabelo deve estar uma bagunça e eu me sinto encharcado de suor enquanto ela está linda, absurdamente linda. Não a vejo desde o encerramento das aulas, mas nossa, como eu gostaria de a ter chamado para um encontro quando tive a oportunidade de iniciar uma conversa com ela um tempo atrás.
– Oi! Bem, eu tô... – Aponto para Artur e para meu carro visivelmente quebrado e não sei mais o que falar, encolho os ombros em uma tentativa de mostrar desistência e isso a faz rir, a risada dela mexe algo em mim que eu não sei se gosto muito.
– Entra aí, vou levar vocês em casa, é bom você chamar um reboque para essa geringonça. – A forma como ela se refere ao meu QUERIDÍSSIMO carro me fere um pouco, ela deve perceber minha irritação porque franze os olhos e sai do carro. – Ei ei, foi mal pela brincadeira, só tô tentando descontrair esse clima, seu amigo não está morto, né? – Um pouco melhor com seu pedido de desculpas, nego com a cabeça e pego meu peso morto que chamo de amigo pelos ombros, Juliana pega suas pernas e me ajuda a coloca-lo no banco traseiro de seu carro. O interior de seu carro tem cheiro de hidratante labial e perfume doce.
– Obrigado pela ajuda, ele me fez bater o carro e eu estava pensando numa forma gentil de mata-lo enquanto ele estava desmaiado. – Como se me ouvisse, Artur começa a roncar no banco de trás, arrancando mais uma risada de Juliana. É tão bom ouvi-la rir que eu quase esqueço que meu carro está esmagado contra uma árvore agora.
Ela dirige em silêncio até a casa de Artur, nem tenho tempo para pensar em como ela sabia seu endereço quando o celular da garota começa a tocar com alguma música que reconheço ser dos Queens, ela tem um gosto musical tão bom quanto sua risada. Ela encara o aparelho por algum tempo e o guarda na bolsa, ainda tocando.
– Você deveria levar ele para dentro.
– Sim, é, eu vou. Obrigado pela carona, ficamos te devendo essa. – Ela sorri e espanta o ar com as mãos, noto uma pequena tatuagem em forma de trevo em seu pulso. Saio do carro com um Artur cambaleante e agora meio suado nos ombros. Juliana começa a dar a partida no carro e sinto um frio na barriga em saber que nosso tempo juntos acabou.
– Até mais, Carlos, foi bom te ver.
– Foi bom te ver também, quem sabe nos esbarramos por aí...– Mas ela já tinha ido embora.
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Todas as (inúmeras) cartas que não te enviei.
Romance"Eu odiava meu corpo, odiava meus amigos, odiava a escola e odiava minha vida. A única coisa que me mantinha são era você, e agora você foi embora e eu te odeio também." 2023. Kamylle Dantas Amorim