Capítulo 1 - A menina no caldeirão

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      Tudo era escuro. A sensação era de estar mergulhada em um local profundo e congelante sendo, constantemente, puxada para baixo pela escuridão. Quanto tempo havia se passado? Meses? Anos? Eu já perdera a conta a muito tempo mas era certo que havia passado tempo suficiente para que todos com os quais eu me importava tivessem deixado esse mundo. Ele nunca deixaria que houvesse qualquer vestígio da minha antiga vida pelo qual ansiar, mesmo que eu não tivesse esperança de sair. Cephras nunca fez as coisas pela metade e estava tão determinado que estou certa de que ele havia garantido que não haveria uma casa para a qual eu pudesse retornar. E assim o tempo foi passando. Se arrastando lenta e constantemente. É eterno. Mesmo assim consigo me lembrar do início, quando eu fora lançada aqui dentro, se é que posso me referir a onde estou como um lugar.

      Naquele dia, assim que meu corpo se chocara com a água, foi como se uma sessão de tortura houvesse se iniciado. Era possível sentir meu corpo mudando. Cada fibra, músculo e osso do meu corpo se desfazendo apenas para se transformar em algo novo. A dor fora insuportável, algo como nunca senti antes, e eu sabia que nunca mais seria a mesma mulher mesmo se escapasse. No começo, achei que fosse ficar louca. A dor, o medo e o luto tomando conta da minha mente de forma tão avassaladora que já não sabia mais quem eu era.

      Tudo manteve-se igual depois de um tempo. As dores cessaram, o barulho em minha mente tornou-se apenas um zumbido desagradável e eu me sentia destacada do meu próprio corpo. Nem viva, nem morta, apenas existindo dentro daquela imensidão infinita, flutuando... Tudo o que me restara foram memórias de uma vida que já não era mais minha, passando como uma história em minha cabeça, de novo e de novo. Chorei muito. Por saudade e por luto. Pelas pessoas em minha vida que deixei para trás involuntariamente. Pela curta vida interrompida. Pelos sonhos que eu nunca seria capaz de realizar. E pela dor e o arrependimento de tudo que me levou ao momento presente.

      A forma como eu acabara ali não fora agradável. Havia um homem que fora perdidamente apaixonado por mim, o qual eu nunca fui capaz de amar de volta. Não pude corresponder a este amor e ele nunca aceitou isso. Por mais que eu explicasse dezenas de vezes ele jamais parecia entender a razão de eu não sentir o mesmo que ele já que todas as mulheres onde ele vivia caiam em suas graças. Ainda assim ele tentou incessantemente. Com presentes, votos de amor eterno e discussões nas quais ele tentava a todo custo "me fazer ver a razão" e como eramos feitos um para o outro. Não é preciso dizer que ele ficava mais frustrado a cada tentativa falha.

      Em uma de nossas acaloradas discussões eu cometi o erro de inventar a desculpa de que não poderíamos ficar juntos por conta de sermos diferentes. Não vinhamos do mesmo mundo, da mesma classe social ou sequer da mesma espécie. Achei que aquele seria o argumento perfeito, achei que ele finalmente compreenderia que não fomos feitos um para o outro e que eu nunca corresponderia aos seus sentimentos. Mas não. Quão burra eu fui naquele dia. Tão jovem e inocente, sempre esperando o melhor das pessoas. Nunca sequer imaginara que ele estaria tão louco de "paixão" ao ponto de ir atrás do lendário Caldeirão apenas para me transformar em uma dos seus. Para arrancar de mim qualquer desculpa que eu tivesse para mantê-lo longe.

      Agora vejo o quão ingênuafui. Vejo quão estúpido foi achar que seu sumiço significava desistência. Que ele teria voltado para o seu lado da Muralha e se focado em quaisquer outros assuntos que seu tipo desse atenção. Ledo engano. Ele voltara, me arrastara a força para terras proibidas para mim e apenas para me jogar aqui dentro. Não sabia o que era naquele tempo. E agora estou aqui esperando que ele, em um ato misericordioso, me liberte.

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