Rosas

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     Havia uma rosa solitária em um vaso fino de cristal, Dos-kun a comprou. Porque, segundo ele, os santos e a bíblia ficariam sozinhos, sem ninguém. Então, em cima do pequeno altar na sala, pode-se ver uma única rosa vermelha dando cor ao amontoado de figuras e páginas velhas, quase amareladas.

     A rosa é linda, mas só quando ninguém a toca. Morreu há dias e a água gelada no vaso é só para tentar mantê-la por mais algum tempo, até que ele compre outra. Quando uma brisa fraca invade a casa por uma fresta qualquer na janela, logo duas ou três pétalas caem. Por isso, a rosa é linda se ninguém interferir.

     Todas as vezes, Dos-kun compra uma rosa e se apega a ela. A pobre coitada ficará presa até se despetalar completamente. E demora um pouco, porque a água gelada ajuda a manter um resquício de vida. Quando uma pluma vermelha cai, parecendo uma gota de sangue, ele a coloca de volta no lugar, tal qual consertando-a.

     Dos-kun ama as rosas, mas prefere vê-las mais mortas a cada dia que passa a livrá-las do sofrimento. Ao rezar, sempre antes de dormir e depois de acordar, ele lê os versículos para ela, aproveitando da companhia doce. E morta.

     Uma vez, Sigma perguntou o porquê de ele não comprar rosas novas toda semana ao invés simplesmente deixá-las até perderem tudo. Dos-kun respondeu que ele mata menos rosas se tirar tudo o que puder delas antes de encontrar uma nova. É uma forma de salvá-las do cruel destino de enfeitar um velho altar. É uma forma de amá-las.

     Dos-kun diz que sou um anjo, mas uma rosa, também. Ele tirará tudo de mim antes de me trocar. A diferença é que sou especial, uma rosa que não se encontra em qualquer lugar, então ele vai aproveitar o dobro do normal. Eu deveria simplesmente matá-lo antes de morrer.

     Ele diz que não sabe o que vai fazer quando me perder, que ninguém pode ocupar meu lugar no vaso de cristal. Falei que ele tinha a Sigma, Dos-kun falou que só tem a mim. Eu, Nikolai Gogol, sou o tudo de Fyodor Dostoyevsky, seja para o plano, seja para o coração. O problema é que ele colocará o plano em primeiro lugar, e não chorará em meu funeral. Se houver algum.

     Fazia um tempo que não conversávamos. Dos-kun está sempre em seu quarto, esquecendo até de sua rosa principal. Mas ele não esquece das secundárias. Então, quando saiu para rezar antes de dormir, o acompanhei.

     Pela manhã, o normal é ler o Evangelho. À noite, algum Salmo ou Oração. Nos domingos costumava rezar o Terço, só não tem mais tempo para isso. Ele deve se culpar por ter deixado seu Deus um pouco de lado. Culpo-me por ter deixado o meu.

     Assim que terminou de ler a última palavra, consegui ouvir minha própria voz repetí-lo no "amém". Ficamos em silêncio por meros dez segundos enquanto ele fez um pedido silencioso. Quando virou para mim, sua expressão era neutra, mas seus olhos tinham um brilho confortável.

     — Nikolai — sussurrou, aproximando-se. — Fiquei feliz por tê-lo comigo, hoje. Algum motivo especial?

     — Não — ri baixo, aproximando-me, também. — Sim, na verdade. Fedya, você tem certeza de que sou sua rosa preferida?

     Ele arqueou o cenho levemente e lançou um olhar para a rosa morta no vaso antes de voltar a mim.

     — Claro, Kolya. Por que não seria?

     Fingi pensar por um breve minuto.

     — Não sei — dei de ombros. — Eu só queria que dissesse me amar mais que às outras. Você gosta de mim mais do que de Sigma, não gosta?

     Foi sua vez de rir, um riso soprado e com um ar de elegância que somente ele poderia ter.

     — Sim, com certeza — respondeu em russo, ao invés de japonês, e a súbita troca de línguas fez meu coração explodir. — Amo-te, Mykola. Mais do que amo qualquer outra coisa. Mais do que amo qualquer outra rosa. Mais do que amo qualquer outro anjo. Mais.

     — Eu sei.

     Abracei-no fortemente, mesmo que ele não gostasse de toques sem aviso prévio. Ele retribuiu, Dos-kun sempre retribui. Os braços prendendo minha cintura, mas fraco, porque sua força física não é das melhores.

     — Amo você, também — murmurei baixinho. — E eu não vou deixar que ame outra rosa. Eu te mato antes disso.

     — Claro — concordou. — Faça isso.

     Eu faria.

     No outro dia, pela manhã, não havia uma rosa solitária em um vaso fino de cristal. Mas Dos-kun não rezou sozinho. Eu estava lá, como sua rosa.

Rosas - Fyolai - One-shotOnde histórias criam vida. Descubra agora