Capítulo I "Terra Firme"

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A brisa fria causa calafrios alucinantes quando toca a superfície lisa da minha pele, arrepia os finos fios de cabelo como uma onda de choque eletrizante.
O som das ondas do mar enchem meus ouvidos, elas falam ainda mais alto por conta do silêncio da noite escura que cerca essa imensidão banhada em água salgada.
Quanto mais olho para fora das barreiras desse navio de carga, menos enxergo, não é como se tivesse algo que eu queira ver.
As estrelas também não brilham, já foram engolidas pelas nuvens densas, como se fossem uma deliciosa refeição.

Mente vazia demais, estômago.

Faz dez longos dias desde que embarquei clandestinamente nesse navio que vai do Japão para a Coréia do Sul.
Recebi uma proposta de serviço, vai dar uma grana preta. Uma coisa que por agora não tenho muito, ou talvez eu tenha tão pouco que não pude ao menos pagar um transporte decente.
Mas fazer coisas erradas já não parece ser tão errado assim. Como embarcar em um navio de carga em sigilo.

- Eu devia ter trazido mais comida. - Me sento no chão, encostando minhas costas doloridas no container, suspirando.

Difícil, a vida é tão difícil. Malditos sejam aqueles que tem a vida boa e fácil, a minha inveja poderia matá-los. É perturbador imaginar alguém que tem tudo na mão.
Eu sempre tive que ralar, sofrer para ter o básico, logo desisti disso, todo esforço é inútil. Eu não quero o básico.
Se as coisas podem ser fáceis para alguns, decidi que para mim seriam também, nem que eu precisasse sujar minhas mãos por isso.

Perdi a minha mãe muito jovem, para uma doença crônica. Ela era tudo que eu tinha, ninguém conseguiu contato com minha família paterna, então não tinha para onde ir. Obviamente eu fui abrigada e aquele era o "meu lugar", de onde eu venho, as crianças são como gado, um número de cabeças, só que cheias de piolho.
Fugi do abrigo na adolescência, cansada de ser repreendida, agredida por má conduta desde muito cedo. Foi quando comecei a andar com umas pessoas de índole ruim e decidi que aquele era meu "novo lugar".
Vivendo no subúrbio da cidade, aprendi tudo o que sei por lá, tudo para sobreviver.

A verdade é que, alguém que nunca teve um lar de verdade, não tem um lar. Percebi que já chamei muitos lugares de "o meu lugar" no começo da minha vida adulta, quando completei a maioridade, meu lugar era o mundo.
Deixei meu estado pela primeira vez, logo deixei o meu país. Mas como diabos eu parei aqui? É como se o vento soprasse em todas as direções, e eu fosse apenas um aviãozinho de papel.

Fecho os meus olhos, o cansaço me corrói pedaço por pedaço. Sinto a voz do oceano cantar mais alto, talvez seja o momento de deixar mais uma noite passar.
Esses dias foram definitivamente longos, e a comida definitivamente insuficiente.
Mas isso é o menos importante.
Essa é a décima primeira noite, então logo ao amanhecer devemos chegar à Coréia do Sul.
Talvez seja bom eu estar fraca demais para pensar onde essa lata velha vai parar, com certeza a costa vai estar muito longe da capital. A vida é tão difícil.
Quando parece que um problema está resolvido, aparece outro.

O maior porto sul coreano é o porto de Busan, que é um pouco longe da capital. Obviamente vou desembarcar lá, mas vou precisar de uma grana para comer e comprar uma passagem de trem, que é bem caro.
Porra.
Meus neurônios estão queimando, ou talvez seja a queimação no estômago. Dois dias sem comer não mata, mata?
Não sei dizer se essa escuridão vem dos meus olhos se fechando, ou do céu com nuvens carregadas.

Que seja.

Abro meus olhos, visão focando e desfocando continuamente, sem descanso. O céu já está claro, mas não consigo encará-lo por muito tempo. Por mais nublado que esteja, qualquer mínima luz é capaz de queimar a minha retina.
Estou zonza, meu corpo está fraco, então me levando lentamente, enquanto me apoio no container. Olho ao redor, há água e uma extensa terra firme repleta de containers.
Estou no porto de Busan, finalmente cheguei.

"Opposites" - Kim SunooOnde histórias criam vida. Descubra agora