Aurora encontrou na dor do parto, concepção criativa e víride. Os passos dela, adejantes sombras sobre os nós da terra. A narrativa entre as folhas de lírios, sementes. Aurora, da pele morena, dos cabelos cacheados, das dores menstruais, do sangue real. Pernas abertas, arreganhadas para o caule nativo, rústico e incrustado na seiva de um lençol freático. Entropia de histórias remanescentes. Como as flores de pretéritos quase perfeitos. Aurora regurgitou pétalas sobre as nódoas dos pântanos. Deitou o ventre sobre a água tórrida, molhou o vestido. Inspirou a narrativa para dentro dos pulmões de papel e desembrulhou cenas.
Três cenas...
...e um risco de amor.
Tempo azáfama/preguiça – bom tempo, mas sublimado pelo enredo. Amordaçado e rebobinado na impermanência dos vincos daqueles lábios. De rebordos vermelhos e úmidos, eclipsados pelos olhos de garça que mergulhavam no lodaçal. Pântano de índios fossilizados e feras antropomórficas... Pantanal. Pantanais. Galinholas sintáticas e jacarés doutos delimitavam o espaço terreal. Reticências provincianas, donde pisavam os pés dela. Da moça forte e insustentável. Rapariga de etcétera e tal. Alta para alguns e baixa para outros. Bela para uns e ela para outros. Erma peregrina, seios soltos sob os olhos da garça. Ela andou, saltitou pedras e eventuais argilas fingindo penedos. Procurou por algum norte, mas só topou desolação: terra que um dia foi. Afoita e desesperançosa, uma síntese de secreções vaginais e frutos maduros. Escorregou na secura que sublinhava o atoleiro. Pantanal. Charco. Atascal. Brejo, no dizer dos avós. Recuperou o equilíbrio. Ali, no limite entre o conhecer e o dessaber, ela contemplou um casal de araras. Arara rara. Araras mortas, de trás para frente, apenas ossos vazios e relembranças. Triturou os fósseis e misturou com argila, com os dedos costurou um oximoro: vestiu nudez.
Menos uma...
...e um friso de dor.
Lenhador de barba farta, sardas ocultas, nariz pequeno e arredondado, pelos castanhos e uma vontade voraz de colecionar outonos. Outrora um menino de rosto pelado e pele imaculada: sonhador que devaneava "serei o sulco das estações!". Mediador dos germens e folhas secas. O lenhador sonhava. Machado em riste, botas vermelhas e macacão, cumpria a marcha de poda entre as árvores. Urrava "e o mundo vai nascer de novo!". E o mundo nasceria de novo: puir os sete mares, um só. Porventura, um de muitos outros continentes de um tempo já findo. Lascas de verbos e acentos agudos caíam sobre areia vermelha. A veia, centelha rubra. Como uma rubrica na margem de corte do fluxo narrativo. "Antônio!" – gritava a mulher do lenhador. Antônio virava a cabeça. À sua frente, o resto da floresta. Às suas costas, o outono antecipado por suas mãos. Ao invés de folhas, troncos frios e o solo. A casa, de pouca madeira e muita pedra, exibia na boca da entrada a sua mulher. Uma jovem turva, de poucos verões e muitos invernos. A lasca na pele furava nascentes de rios sobre a terra. A terra fluía encravada nos vãos das unhas e cutículas do casal. Morada sem filhos, teto de aragonita. "Volta! Antônio!", a mulher apregoava. "Voltarei!", Antônio respondia. Mas não voltava. Continuava a podar. Ferir, esculpir, incentivar, gritar e derrubar árvores e mais árvores. Colecionava tostões lenhosos. Lascas do menino que germinou o lenhador. Distância de amor era espera. De casa, de pedra. Tapera recôndita, anelada pelas mãos do lenhador. Antônio! Antônio Antônio Anônimo Antônio... Podava onde ninguém mais cabia.
Menos duas...
...e um visco de flor.
Ruas vazias, de um (eu) interior. Passos ilegíveis, dois pares. Quatro pés, que sustentavam mãos e porções de singularidades. Outro lugar. Ventos do sul, ventos do mar. Um outdoor: pessoas não significadas. O ósculo das placas tectônicas, em sincronia pura, derrubou o machado em riste e desnudou as vestes nuas. Olhos de dois. Dois olhos nela. Dois lábios eles. Violência despudorada, sexual aleivosia encoberta por janelas de ágatas. Carne devorou carne. A mulher do lenhador soçobrou enquanto memória, onde a concubina do pântano, de cheiros onça piranha tamanduá tuiuiú, triunfou. E o gesto desfez a realidade, ficou. Nem lágrima, nem doce, nem sentimento, nem forma, nem cor. Os desconhecidos uniram sementes. Esperança residiu colheita. Ode ao fruto que vicejou no interior da moça. A moça forte e insustentável. Força que se converteu em fraqueza, na medida em que o lenhador a deixou. Sobraram as memórias das onças, piranhas, tamanduás, tuiuiús... Sobrou uma criança em suas mãos.
Menos três...
...e um cisco de ardor.
Aurora descobriu no seu parto a dor de sua genetriz. A lasca em seu umbigo, ungido sêmen de fragueiro. A pele morena, da mãe. Os cabelos cacheados, do pai. As dores menstruais, da traição. O sangue real, das pedras. Contemplando a vida íntima daqueles pedaços soltos de rocha, ela decifrou o decorrido. Três cenas: uma mulher, um homem e ela. O ventre aquecido pelas águas pantanais. Vestido intumescido pela seiva rubra: refluxo entre as pernas, que engendravam ágatas, angelitas, citrinos, dolomitas, quartzos, turquesas, safiras, âmbares, cristais, cornalinas, esmeraldas, rubis, topázios, turmalinas... Coração:
Cujos interstícios renderam relvas de briófitas.
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A vida íntima das pedras
ContoPode a vida se confundir com a poesia ou com o estranhamento da narrativa? A vida íntima das pedras é um conto de nós cegos e pontas soltas, de encontros quentes e resoluções assimétricas.