A alguns metros de distância, ela pode enxergar a fogueira ardendo. Suas chamas estalavam, trazendo um ar mais fúnebre àquela noite. Fúnebre, não porque cumpriria sua sentença, mas porque algo maior estava envolvido naquilo. Então, foi caminhando ao lado daqueles que apresentavam uma expressão de alívio no rosto, em direção ao fogo.
Tudo aquilo tinha começado a alguns anos, quando ela tinha decidido não seguir a religião dominante da época, simplesmente porque não se sentia confortável com suas ideologias. Assim, determinada a se encontrar espiritualmente, durante uma noite de lua crescente, saiu escondida de casa com uma vela em suas mãos.
Ela foi caminhando por uma trilha da mata — uma que conhecia desde criança —, sem rumo, apenas para aliviar seus pensamentos. Porém, percebeu uma movimentação ao longe e foi se aproximando, escondendo-se por trás das árvores. Ao observar bem, notou um grupo de pessoas trajadas com robes, fazendo uma espécie de culto à natureza. Ela ficou maravilhada com aquilo e sentou-se, atrás de uma árvore para observar melhor, no entanto, após um tempo, acabou adormecendo.
Quando se deu por si, já era de manhã. Tinha sido acordada por um amigo que, pelo visto, também passara a noite ali. Viu o que estava acontecendo durante a noite? Ele perguntou, obtendo um Sim como resposta. Eles decidiram, então, observar o local que já estava sem ninguém e encontraram um livro. Você sabe ler? seu amigo perguntou e, mais uma vez, obteve uma resposta positiva. Assim, ela começou a lê-lo em voz alta. Depois de um tempo, entenderam que o livro era sobre paganismo e, ao mesmo tempo, o amigo saiu de perto do objeto. Isso é do satã! afirmou. Porém, nisso os dois discordaram. Eles se conheciam desde pequenos e eram muito próximos. Então, maravilhada com o que tinha encontrado, pediu que seu colega guardasse segredo. Relutantemente, ele concordou. Contudo, após esse episódio, nunca mais viu seu amigo.
Lugar de bruxa é na fogueira! Queimem-na! Pecadora! Vá para o Inferno! gritava a multidão enquanto ela era levada em direção ao fogo. Encontrou, ao longe, seu amigo que, apesar da antiga proximidade, agora parecia satisfeito com o destino dela. Então, ao aproximar-se ainda mais do povo, percebeu que seu colega era uma das pessoas que berrava. Adoradora do diabo! ele dizia com todas as forças. Mas ela continuou andando em direção ao seu destino.
Ao chegar em casa, entrando pela porta dos fundos, guardou o livro embaixo de seu colchão, para que ninguém o encontrasse. Por noites ficou lendo seus ensinamentos e, cada vez mais, se identificou com o paganismo. Contudo, havia um problema: como praticar a bruxaria sendo que ninguém poderia ficar sabendo?
Assim, por vários dias e noites esperou sua família sair de casa para praticar seus rituais. Ela era discreta – usava apenas velas, um potinho de barro, algumas pedras, uma taça d’água e, claro, seu livro. Porém, um dia, seu irmão havia passado mal e voltado para a casa mais cedo e a pegara no meio de um ritual. Ele, assustado, contou para seus pais assim que chegaram e ela, agora, se encontrou em mais um problema: sua família poderia entrega-la para a Inquisição. Entretanto, não o fizeram. Mas os olhares de canto de olho e até uma expressão de insatisfação tornaram-se parte da rotina de seus familiares. Além disso, fora colocada em uma catequese que deveria frequentar todos os dias e, seu livro, havia sido queimado. Todavia, ela já o havia decorado.
Quanto mais alto ficava o estalar do fogo, mais reconhecia os rostos da multidão. Além de uns conhecidos da catequese, encontrou sua família. Em qualquer lugar do mundo e a qualquer época, seria comum que ao menos uma lágrima escorresse dos olhos de seus parentes. Contudo, ao invés de lágrimas, ela escutou gritos: Queimem essa pecadora! Ela é filha do demônio!
Então, na catequese, encontrou um homem pelo qual se apaixonou e, por alguns anos, ficaram juntos. Seus pais apoiavam a relação, especialmente por ele ser extremamente religioso. Inclusive, ele andava sempre com um terço nas mãos e um livro sagrado nos braços e, o presente que deu à sua namorada após uma no de namoro, foi um crucifixo. Desse modo, quando, em um dia de lua cheia, entrou no quarto dela para convidá-la a sair e a viu debruçada na janela, pronunciando palavras de culto à uma entidade feminina e segurando um pentagrama, saiu em disparada para denunciá-la à Igreja. E foi assim que lhe foi dada à sentença de morte na fogueira.
Um dos rostos que viu foi o de seu ex-namorado. Ele era outro que gritava. Mas ela não se importou com isso. Assim que a despiram de toda e qualquer vestimenta, começaram a encará-la com nojo para que sentisse vergonha. Contudo, ela já estava acostumada com a nudez. Então, prenderam-na a uma haste de madeira e colocaram-na nas chamas. Porém, ela não morreu.
O curioso disso tudo é que não era Idade Média. Era o século XIX. E as chamas não ardiam fisicamente, elas ardiam em seu interior. A fogueira, não cheirava à fogo, cheirava à preconceito. Os gritos da multidão, porém, se mantinham. Já a haste, na qual estava presa, não possuía nada de madeira, apenas intolerância religiosa. Ela poderia ter aceitado a religião predominante como sua, porém, preferiu estar mergulhada nas chamas seguindo o que seu coração mandava, até porque não há morte pior do que aceitar o que se é imposto.
Será que aquela multidão, em algum livro esquecido, em alguma anotação ignorada ou em alguma escritura sagrada, já tinha ouvido falar em livre arbítrio?
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Conte-me um conto
Short StoryNem sempre nossa sociedade é a mais justa, e nem sempre as pessoas tomam as decisões corretas. Essa coletânea busca fazer o leitor refletir um pouco sobre as questões sociais e, talvez, mudar seu modo de ver o mundo em que vivemos.