*Conto publicado pela editora Andross em 2018, em seu livro Sinfonia das Letras
Ela viva na rua, jogada em qualquer canto. Mas não fazia mal, ela nunca se importou em não ter um lugar onde morar. Com as roupas rasgadas, raramente perambulava pela cidade — costumava ficar satisfeita onde quer que estivesse.
Também vivia sempre sozinha, mas nem sequer se importava. Costumava ter seus cachorros como companhia e, às vezes, algum mendigo infeliz vinha importuná-la.
De quando em quando, algum bêbado desprezível vinha lhe arrancar o sossego para usá-la como instrumento de prazer. Isso já tinha acontecido tantas vezes que nem se importava mais, não fazia diferença o resultado — depois de anos nessa vida, não tinha porque ter mais traumas quando isso acontecia.
O máximo que lhe podia ocorrer era a gravidez, mas tampouco se importava com isso. Há poucos meses, estava grávida pela, provavelmente, quarta vez. O destino da criança não seria a rua, muito menos o orfanato. Assim como nas três gravidezes anteriores, o destino do quarto bebê seria o mesmo – a lata de lixo.
Ironicamente, nas poucas vezes em que se importou em buscar alimento, ia ao mesmo lugar. Costumava pegar os restos. Aquela lata de lixo era como um santuário demoníaco: fornecia alimentos em troca de vidas.
Já tinha perdido as contas de quantas vezes tinha passado mal, mas esperava que, o quanto antes, isso acabasse. Ela queria que tudo mudasse, queria ir para um lugar diferente. Precisava de um lugar melhor que o mundo, um lugar cheio de calor. Ela queria ir para o Inferno.
A maior felicidade dos últimos anos fora quando a diagnosticaram aidética. Teria menos tempo aqui, menos tempo com toda essa infelicidade.
Seus raros momentos de alegria se resumiram aos seus cachorros. Afinal, às vezes, fazia-lhes, assim como os bêbados com ela, de um objeto para fornecer prazer. Os animais continuavam lá, deviam gostar de suas atitudes, ou, então, iguais a ela, eram acomodados.
Ela era, sim, acomodada. Nunca tinha feito nada para melhorar sua condição e nem pretendia. Era tão indiferente sobre sua situação que, quando se viu à beira da morte, recebeu-a de braços abertos. Mas uma coisa é certa, ela não gostou de morrer. Ela foi para o Céu.
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Conte-me um conto
Short StoryNem sempre nossa sociedade é a mais justa, e nem sempre as pessoas tomam as decisões corretas. Essa coletânea busca fazer o leitor refletir um pouco sobre as questões sociais e, talvez, mudar seu modo de ver o mundo em que vivemos.