i. impenetrável

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"assistindo as raízes ainda vivas serem consumidas pelas chamas
eu estava preso na sua mão de ouro
devastando meu amor por muito tempo"
— would that i, hozier

***

KETTERDAM, KERCH

Freya tinha um horário específico do dia adepto apenas para refletir. Era quando o sol se punha, mas não totalmente, um fiapo de luz refletido sob as águas que transformava as falésias que costumavam discutir contra o mar em muralhas douradas. Deixava o mundo todo um pouco dourado também, apenas por alguns minutos, antes que o sol partisse como em todos os outros dias e levasse com ele a cor.

Havia um lugar para refletir em algum espaço daquele navio. Um banco velho e com a cor desgastada, de um couro sintético que um dia fora vermelho e que poucas pessoas prestariam atenção o suficiente para notar que se tratava de um baú. Freya assistiu cuidadosamente Arkadi se sentar ao lado dela sob ele, o banco, com uma distância considerável entre os dois.

Arkadi, um observador nato e também um homem de palavras curtas, acendeu o seu cigarro e tragou em silêncio. Ele não era como Orfeu, o maior bastardo do Barril, que dizia coisas desagradáveis sempre que abria a boca, mas também não era nada como Lemar, o homem para quem Freya devia a vida, que dizia muitas coisas extraordinárias, apesar de barulhentas. Arkadi estava em algum lugar entre os dois, o desagradável e o extraordinário.

Normalmente, eles se sentavam ali em silêncio. Arkadi notou o padrão de Freya em algum momento dentre as viagens dos dois e resolveu entrar na onda. Um ano e meio dividindo um navio com mais de dez marujos nunca deu espaço para qualquer tipo de intimidade entre eles, mas nas últimas semanas em que ambos navegaram sozinhos, logo após o enterro de Lemar, eles aprenderam a conviver de sua maneira. Os dois ainda eram desconhecidos, mas havia um respeito mútuo que Arkadi parecia muito tranquilo em sustentar, sem nunca ultrapassar para a zona amizade.

Freya tinha a sensação de que Arkadi temia intimidade ainda mais do que um naufrágio.

Em partes, ela se sentia imensamente grata por isso. Ela não suportaria ver mais traços de um homem que fora praticamente a sua figura paterna em dois anos em Arkadi agora que ele se fora. Embora Freya soubesse que ambos não possuíssem o mesmo laço sanguíneo, foram anos de convivência o suficiente entre Arkadi e Lemar para que um tenha pego características do outro.

— Então... Cinquenta milhões? — Arkadi perguntou, pisando com a mão um pouco para trás para poder se esticar feito um gato por cima do banco. Aquela era uma posição que ele já fazia com frequência, como se precisasse estar sempre esticando os ossos velhos.

— Você nunca é discreto, é? Sempre pergunta as coisas na lata — Freya disse e viu pelo canto dos olhos Arkadi a responder com um simples alçar de ombros.

Ela sorriu em divertimento.

— Cinquenta milhões — Arkadi repetiu.

Freya reconhecia esse sentimento, essa urgência. Ela também detestava sentir que estava sendo deixada para trás, detestava não estar a par de tudo. Fazia com que ela tivesse a sensação de que estava sendo enganada, como num truque. Era algo no qual ela sabia que Arkadi se identificava. Embora, daquela vez, Arkadi parecesse um pouco mais... curioso. Provavelmente ele desbloqueara essa nova e terceira emoção recentemente.

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