Capítulo 1

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[...]

Nem tudo é o que parece.

Como nem tudo é.

Havia uma luz diante a penumbre, uma guerra que carregando em si seus contrastes, mesmo fraca, permanecia existente. Remexendo seus anéis presentes na sua mão direita naquela agitação silenciosa, dissolvendo o que tanto lhe afligia inconscientemente. As joias a adornavam com tanta delicadeza, cintilavam na luz que transparecia pela janela. As cortinas tinham uma tonalidade vinho em um escritório angustiantemente solitário, mas realizavam seu balançar gracioso, como uma dança folclórica cerimonial antiga.
O entardecer era evidente devido a janela que mostrava a certeza vaga do que os respingos de água e o dançar das cortinas já denunciavam.

O ambiente tinha uma dimensão grande em comparação ao quão sufocante estava sendo no momento. E digo isso, não por causar uma trama em cima mas porque eu estou lá, estou lá porque estou aqui.

Documentos titulados colocados horizontalmente de maneira organizada em cima de sua mesa, mas permaneciam esquecidos. O mero enfeite ignóbil.
A mesa parecia estar toda milimetricamente calculada no cômodo, não tinha pó algum na sala em que estava e as gavetas estavam todas limpas.

Dostoiévski e Freud sempre ressaltaram a complexidade e irracionalidade relacionadas não apenas ao sentimento dos seres humanos mas ao funcionamento do cérebro, devido as suas contradições, beira a hipocrisia. Quer dizer, Anita é conhecida por sua organização e por sua habilidade de controlar as situações, como se tentasse compensar a confusão e o tumulto que constantemente a atormentava. Contudo, por mais que se empenhasse em manter a fachada de controle, no fundo tinha nítida noção de que não era realmente quem controlava a situação.

Nunca tivera sido.

Isso a assusta.

O olhar permanecia no copo de água esquecido em cima da sua mesa, balançava, devido ao movimento com os anéis.

Nunca tivera sido.

O peso do passado se fazia presente ante suas costas: antes, era inconsciente, mas houve um estímulo que o trouxe a superfície. O curioso, é que há vestígios do que antes era, mas detivera, aquilo que sempre optou por ser. Bobagem seria mencionar que seus sentimentos não estavam a flor da pele, sentia ódio.

Não raiva do estímulo, mas sim, de si mesma.

Raiva por quem é, raiva por quem respira, raiva de quem o passado fez.

"Me ajuda a fuder com o Matias".

"Denuncia o Matias, mas não faz isso por mim, faz por você".

A existência do arquivo no lado superior direito de sua tela do lap-top a fazia girar na possibilidade da liberdade, uma liberdade tão tola e frágil que para si soava fudidamente patética. Jamais admitiria a Verônica a imensidão da dor que sentiu ao ouvir "Karina" saindo de seus lábios.

O nome lhe traz aquele sentimento contraditório, um sentimento de pertencimento mas ao mesmo tempo aquela tristeza dado que no final de tudo; é isso que ela decidiu lutar por. Lutando pela parte que queria de volta, a parte que não importa o quanto demore, conseguirá traze-la de volta.

Aquela garotinha que desrespeitava todos a sua volta pela falta de compreensão que sua mãe tinha sobre ou a teimosia que achou conseguir chegar ao respeito que tanto almejava, porque não se sentia ouvida o suficiente.

O rosto foi encoberto pelas ambas mãos, uma irritação genuína.

- Porra, escrivã.

Como voltar a reprimir algo que flutuou até a consciência sorrateiramente?

O nadaOnde histórias criam vida. Descubra agora