Mudança

Prólogo

Dois caixões.

Mas nem todos usam preto.

A tia Viviane fez questão de não usar, porque "Carmem detestaria isso!" Tio Walter usa uma camiseta surrada quase pequena demais para o tamanho dele, e seus olhos estão inchados. Carmem era sua preferida, e Jorge era o melhor cunhado que ele já tivera. Walter se aproxima de Clarisse, com um copo na mão e ele tem as bochechas vermelhas e os olhos caídos. Clarisse está olhando para o nada, com a expressão apática. Ela ainda não chorou.

– Você tem que chorar – tio Walter sussurra – senão fica tudo errado aí. – Ele aponta para o coração da menina que se limita a inclinar-se e sentir o cheiro forte em seu copo.

– Mamãe te odiaria se visse que está bebendo no funeral dela. Papai te jogaria debaixo do chuveiro. – Ela diz, com a voz doce de criança, o que faz tio Walter chorar de novo e se levantar. Nenhum adulto gosta que uma criança o veja chorar.

O funeral foi curto, a cerimônia foi bonita, toda a família estava lá, e depois todos seguiram para a casa do casal, Jorge e Carmem. Tinha farofa, refrigerante, salada, arroz e feijão. Paula fez tudo o que pode, porque Carmem era sua melhor amiga, e de minuto a minuto ela ia ver como Clarisse estava. A menina passou todo o pós funeral sentada numa cadeira de madeira, na sala, cercada de gente conversando. Ela olhava para frente atenta, para o lugar onde há uma semana, a mãe lhe chamava a atenção para não jogar bola na sala – ela quebrou o porta retratos da família, que fora trocado por um novo e estava no mesmo lugar.

– Você estava avisada, Clarisse, e como punição, não vai jogar no campo semana que vem. – A mãe disse olhando bem fundo nos seus olhos. Jorge olhava de longe, com dó da menina, mas não podia falar nada. O que claro, não o impediu de leva-la ao campo na semana seguinte.

Clarisse era ótima jogando futebol, a mãe sabia disso, mas gostava da casa organizada, e por isso, prometia levar a menina ao campo uma vez por semana para treinar.

Quem a levaria agora?

Tio Walter vive bebendo. Tia Viviane nunca sai de casa. Paula? Não, Paula tem as crianças, e além do mais, só ficaria mais cinco meses no Brasil, depois ela ia para longe, ia para o Kansas. Onde fica o Kansas, meu Deus do céu?

***

Clarisse estava em frente à cinco malas cheias, e a bola de futebol embaixo do braço.

– Tudo certo, meu amor? – Gritou Paula do corredor.

– Ta sim. – Clarisse respondeu.

Quatro horas depois ela estava dando adeus ao Brasil.

– Eu sei que você vai gostar de lá. Meu marido e eu ganhamos essa casa, em um vilarejo chamado Delville, e é uma linda cidadezinha – Disse Paula arrumando o cabelo da menina enquanto esperavam no aeroporto. – Ricardo e Amanda estão empolgados, não é? – Ela olhou para os filhos que estavam tão assustados quanto Clarisse, mas isso não a abalou. Ela foi criada para ser muito corajosa.

No avião, deixaram que ela sentasse no lado da janela. A menina passou quase toda a viajem olhando para o céu e pensando que numa hora daquelas, nenhum carro desgovernado com um motorista bêbado iria incomodar seus pais.

***

Clarisse foi direto para o quarto. A casa tinha dois andares, muito diferente das casas que ela morara no Brasil. Ela olhou pela janela e chamou aquele lugar de lar. Clarisse Saldana viveria ali, estudaria ali, se apaixonaria e iria se casar com Jonathan, que não era o seu primeiro amor. Clarisse teria três filhos, iria se tornar uma advogada e no futuro impediria que crianças como ela, ficassem sem os pais. Ela não permitiria que suas crianças, ficassem sem os pais. Ela não permitiria que qualquer mudança drástica acabasse com sua família.

Clarisse chorou, mas não imediatamente, ou no dia seguinte. Isso aconteceu quinze anos depois da morte de seus pais. Ela olhou nos olhinhos de Carmem Elizabeth e Dean George, os gêmeos que gerou, lembrando-se que há muito tempo, ela não tinha mais Jorge e Carmem.