PRÓLOGO:

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Quando eu estava viva, costumava ansiar pela chegada do verão. A temporada de férias tinha início e trazia, junto com ela, visitantes que vinham de todas as partes. A cidade se enchia de agitação e noites festivas. As brisas quentes balançavam as copas das árvores, o céu ficava repleto de aves migratórias e o mar era o melhor lugar do mundo para se estar, com seu poder refrescante e seu balanço acalentador. Era, sem dúvidas, minha estação preferida.
Agora, nada disso tem mais importância para mim. Não faz diferença em que época do ano estamos. Tudo perdeu a cor e a graça depois que morri. Ou melhor dizendo, depois que fui assassinada. Me chamo Nora Ray. E como um espírito pode ter consciência? É uma boa pergunta e eu não tinha uma resposta para ela até pouco tempo atrás. Então hoje, finalmente descobri. Sei porque ainda estou aqui. Eu o vi, vi aquele que me matou... após meses passados, vagando sem entender quem era ou o que havia acontecido comigo, um rosto surgiu em minha frente e minhas memórias simplesmente jorraram como um rio a transbordar.
E eu soube.
A gente cresce ouvindo histórias sobre mortos que não podem abandonar nosso mundo, enquanto não concluírem seus assuntos inacabados. É claro, jamais havia gastado um segundo pensando sobre isso, sequer acreditava. Mas agora sei que é verdade. Ele é o meu assunto inacabado, o meu assassino. Está por aí, livre, impune e feliz. E não posso deixar que continue assim. Preciso fazê-lo pagar, preciso me vingar. Só então poderei seguir o caminho da luz ou o que quer que aconteça com as pessoas quando morrem.
Ergo-me no ar, flutuando exatamente como o fantasma que sou. Tudo está sombrio e quieto, envolto em escuridão, bem do jeito como me sinto. Olho para baixo, para o cemitério onde estou enterrada. Minha lápide não está visível daqui, a árvore ao seu lado a cobre de cima. Está tudo bem, não preciso vê-la para me lembrar, não mais. Sei quem sou, sei o dia em que nasci e em que morri e sei quem tirou minha vida. Ele esteve bem ali, a menos de 3 horas. Deixou flores, e então partiu. Fecho meus punhos apertados e respiro fundo, embora não precise. O ódio toma proporções assombrosas em meu coração e a mágoa ameaça me desfazer. Mas não permito, tenho de me manter firme. Essa é a única maneira de chegar ao fim, sem destruir o pouco que ainda resta de mim. Respiro fundo mais uma vez, minha determinação cravada em meu ser, como uma tatuagem recém-feita. Movo-me, sem conseguir mais permanecer parada. Torno-me o próprio vento e deixo que meus sentimentos me guiem.
Quase dou de cara com sua janela e mesmo que não tenha, conscientemente, planejado ir até lá, não fico surpresa. Recuo um pouco. Não sou matéria, então não é como se fosse colidir. Contudo, por alguma razão, não ouso atravessar. Pouso minha mão no vidro embaçado, na tentativa de limpá-lo. Não surte nenhum efeito e tenho de apertar os olhos para conseguir enxergar algo. A única luz vem de um poste na rua lá embaixo, mas é o suficiente para me permitir distinguir sua figura difusa, deitada na cama. Observo seu peito subir e descer, desejando com todas as forças que pare. Ele se mexe inquieto e murmura algo sob o sono, vira de costas e o fuzilo com o olhar. Sei que não morrerá esta noite, por mais gana que eu tenha. Uma parte minha, no entanto, fica aliviada com isso. Ele não merece uma morte tranquila. Tem que sofrer como eu mesma sofri. E até que esse momento chegue, farei de tudo para que se sinta como se já tivesse chegado ao inferno, mesmo antes de eu o mandá-lo para lá. Dou uma última olhada em meu ceifador, preparando-me para me afastar, pensando tristemente em como fui ingênua, como pude me enganar.
Como pude um dia cometer o erro de chamá-lo de meu amor...

Uma barganha com a MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora