Os olhos que pesquei
Dois anos antes:
A cidade está pintada de cinza. Uma névoa fria passeia por suas ruas desertas e jardins, deixando um ar de obscuridade para trás, como se o lugar todo estivesse deserto, vazio, morto. Exceto que não está. Ainda é muito cedo da manhã, o sol ainda nem começou a surgir no céu, portanto, os moradores permanecem em suas casas, dormindo confortavelmente no calor de seus cobertores. Eu, provavelmente, devo ser o único fora da cama a essas horas. Caminho despreocupadamente pelo asfalto, observando os estragos que a chuva da noite anterior deixou. De fato, as pessoas terão muito o que fazer essa manhã. Vários de seus jardins estão arruinados. Vejo árvores caídas e partes de calçadas que foram arrastadas pela água. Sem falar na própria água, empossada em vários pontos. O que deve trazer muita dificuldade na locomoção ao longo de todo o dia.
Me sobressalto ao ouvir o pio de uma coruja marrom quebrar o silêncio da madrugada. Ela cruza o céu, voando de um lado da rua para o outro e passa bem acima de mim. O susto tolo inflama meu, já existente, mau humor e faço a curva na próxima esquina, acelerando meus passos, a fim de chegar logo. Desço a viela ouvindo à distância aquele som, o único som que tem o poder real de me acalmar. E, para provar isso, sinto-me tranquilizar verdadeiramente, à medida que aproximo-me cada vez mais do mar. Vejo a infinidade de areia branca, as ondas quebrarem nela e quase que instantaneamente, minha cabeça fica mais leve, parece-me que sou capaz de raciocinar novamente. Largo, apressado, meus tênis e a prancha que carrego embaixo do braço e saio para sentir o frio sob meus pés. Sou tomado por um certo prazer sombrio, enquanto estou correndo. Minha mãe certamente não aprovaria isso. Diria que sair tão cedo para a praia acabaria por deixar-me doente. É claro que nós dois sabíamos que o motivo real era que ela não achava que surfar seria uma atividade digna para alguém em minha posição social. E, talvez, estivesse mesmo certa.
Me chamo Christian Beaumont e minha família é dona das joalherias Beaumont, bem como das minas que extraem as jóias que elas vendem. Isso significa que somos proprietários de uma das mais importantes empresas da região e "os mais ricos daquele pequeno finzinho de mundo". Ou assim costuma desdenhar minha sempre, tão humilde, mamãe. Sou o único herdeiro de toda essa fortuna e venho sendo preparado para geri-la, desde a morte de meu pai, há 3 anos atrás. Para tal, sou forçado a, quando não estiver na escola, ter de receber aulas particulares de economia, contabilidade, administração e entre outras baboseiras, coisa que tende a tomar todo o meu tempo livre. A atual presidente, que por acaso também é a minha genitora, diz que não preciso disso, que o surf, baladas e garotas, são distrações, que esse é o momento de focar no meu futuro, que só falta um ano para que eu atinja a maioridade e que então, terei de cuidar de tudo o que ela e meu pai se esforçaram tanto para construir. Eu não posso vacilar, serei o homem da casa e serei o novo presidente. Para isso preciso abrir mão de algumas coisas. Mais tarde, quem sabe, poderei gozar de todo o tempo livre que quiser, mas agora não. Agora tenho de estudar feito um louco, de comparecer a todos os eventos, aos quais formos convidados, ser o filho perfeito, o garoto impecável. Meu pai gostaria que fosse assim.
Bufo com a lembrança daquelas palavras. Ela vivia repetindo-as para mim. O fizera ontem à noite mesmo. Acho que as devia ter de cor e já não suporto mais ouvi-las. Não importava que fosse verdade, não importava que eu tivesse obrigações, que tivesse um caminho a seguir. Eu não tinha escolhido aquilo, eu não queria aquilo. A cada dia que passava, estava mais certo disso. Mas o que eu faria? Minha vida já estava toda traçada, cada pequena parte sua, devidamente planejada e ordenada, sem qualquer espaço para indecisões, para escolhas.
Passo a mão nos cabelos, olhando para a água vasta à minha frente e decido que preciso de um mergulho gelado. Verifico o local onde deixei meus tênis e minha prancha, mas está tudo deserto, então sigo em frente e deixo que o oceano me engula.
Submerso-me algumas vezes, calculando que a temperatura não deve passar dos 14 ou 15 graus, mas não ligo. Já estive em temperaturas mais baixas e também não pretendo ficar muito mais. Aproveito o choque de adrenalina que recebo, pois isso ajuda a despertar melhor meus sentidos, me deixa alerta e, ao mesmo tempo, me distrai do resto, do que não quero pensar. Nado um pouco e avisto o cais a uma pouca distância. Pescadores aproximam-se das embarcações atracadas ali, preparando-se para entrar em alto mar. Consigo distinguir um iate e duas lanchas próximos e suponho que devem pertencer às famílias mais poderosas, as que dominam a cidade. Mais pessoas começam a chegar e percebo, que essa é minha deixa para ir embora. A ideia de pegar umas ondas rapidamente se esvai. Eu havia esquecido que boa parte da economia da cidade, sustentava-se através da pescaria e que todos os dias, bem cedo, o mar naquela área, ficava lotado. Como não estou com humor para interagir e também não quero ser assistido, estou caindo fora daqui. Porém, antes de ir, dou um último mergulho. Afundo um pouco na água escura, desviando de algumas pedras próximas e já estou me preparando para voltar à superfície, quando noto algo estranho. A cerca de uns 3 metros à minha esquerda, algo está se debatendo. Seria um peixe pego em alguma emboscada? Aproximo-me mais, a fim de enxergar melhor. Tem lixo naquela área, sacolas e outras coisas que nem quero começar a imaginar. Bem no meio, está a criatura, sacudindo-se violentamente e vejo que o "peixe", não é realmente um peixe, na verdade, trata-se de uma pessoa. Concluo imediatamente que deve estar presa e tentando se soltar. Olho para cima, devemos estar a uns 2 metros de profundidade e, mesmo que não ache que seja muito, seja quem for, morrerá se não ajudá-lo.
Chego mais perto e agarro um de seus braços, sua pele está fria e tomo isso como um sinal de que tenho de ser rápido. Começo a puxar para cima, o que agora, dou-me conta, ser uma garota. Não enxergo o seu rosto, mas a cortina de cabelos escuros e sua fisionomia pequena e curvilínea, me diz tudo o que preciso saber. Ela debate-se ainda mais. Está assustada, não deve estar entendendo que estou tentando salvá-la. De repente, preciso agarrar sua perna com força para impedir um chute em um lugar, que tenho certeza, me subjugaria imediatamente. Isso nos atrasa e tenho de usar uma força maior do que esperaria para controlá-la e conseguir chegar à superfície.
Uma vez seguros, abro a boca para dizer-lhe para se acalmar, que está tudo bem agora e que ela não precisa mais ter medo. No entanto, sou surpreendido e fico sem fala. Ela liberta-se de meu aperto com brutalidade e um nado perfeito. Não está engasgando ou tossindo, mas parece sem fôlego, todavia, eu imagine que seja mais por causa de nossa pequena luta, do que por qualquer outra coisa. "Não, ela não estava se afogando". Penso, mas, obviamente, isso não me impediu de tentar bancar o herói e arrancá-la da água, quando claramente não queria. Não me admirava que parecesse estar tão irritada agora.
- Ei! - Ela chama minha atenção, chegando um pouquinho mais perto, como se não a estivesse escutando.
Finalmente saio de meu estupor distraído e a olho. Ela é jovem, deve ter a minha idade e tem a pele naquele tom dourado de quem aproveitou bem o verão. Seus cabelos são escuros e flutuam na água à sua volta, mas são seus olhos, são aqueles olhos que me paralisam. São eles que me fazem recuar mais de um metro para longe dela.
- Qual é o seu problema? - Pergunta-me com raiva e um tanto confusa.
Mas não consigo responder. Estou preso, preso naqueles dois pedaços de oceano que me encaram furiosos. Como pode ser? Como é possível que eu a tenha encontrado? Como ela pode ser real? Observo o seu rosto, o nariz pequeno e empinado e seus lábios cheios e rosados. É ela! Sei que é. Eu reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar no mundo. Eu os vejo em meus sonhos, muito embora nunca tenha acreditado que seriam alguma coisa, além de minha própria imaginação. Então, afinal de contas, ela estava ali, bem à minha frente, existia em carne e osso e diabos! Eu a conhecia. O medo aterrador que me congela, é muito mais letal do que a temperatura. É uma sensação que jamais experimentei, me emudece e paralisa e não sei o que fazer. Tenho vontade de correr, de afastar-me o máximo que puder e apagar esse momento, para que nunca tenha acontecido, para que nunca tenhamos nos encontrado. Mas isso tudo é impossível e tudo o que posso fazer, é observar Nora, sim, sei seu nome, me olhar como se eu fosse um completo retardado. Estou ciente de que provavelmente devo estar fazendo muito para ajudá-la a chegar a essa conclusão, mas não posso evitar.
Seus pensamentos ficam estampados em sua expressão quando, em um momento, parece pronta para me socar e em outro, analisa-me. O silêncio perdura entre nós. Eu, meio que esperando que ela desapareça a qualquer momento e ela, bem, não faço ideia do que ela possa estar pensando. Mas sei que não é bom e por alguma razão, aquilo me inquieta. Algumas gotas caem sobre nossas cabeças e isso tira seu foco de mim. Nora olha em volta, como se só percebesse agora onde estamos.
- Você devia sair da água, vai pegar um resfriado se continuar aqui. - Ela aconselha, ríspida.
Contudo, detecto uma nota suave de preocupação em sua voz e isso finalmente me desperta. Antes que consiga me conter e perceba o que estou fazendo, sorrio e rebato:
- Mas você também está aqui.
- Mas eu estou acostumada. - Me responde, veloz como já sei que é.
Meu sorriso se alarga.
- Mas como vou me acostumar, se não permanecer? - Ela dá de ombros como quem diz: "é você que sabe". E volta-se para as margens. Antes de sair, porém, me olha e fala:
- Da próxima vez, tenha certeza de que a pessoa está mesmo se afogando, antes de tentar salvá-la. - E começa a nadar para longe de mim.
Não digo nada, nem sei se poderia. As palavras me fogem e em seu lugar, sinto um gosto amargo em minha boca. Uma parte minha não quer que ela vá, quer continuar conversando, escutando-a falar, saber quem é, conhecê-la. E a outra, muito mais sensata que a primeira, me diz que assim é melhor, para deixá-la ir. Não compreendo e nem gosto dessa última, mas algo profundo em meu interior sabe que devo fazê-lo. Começo a me fazer perguntas, desesperado para desfazer os nós que se formaram em meu cérebro, mas sou distraído por ela outra vez. Nora está na areia, mas não está indo embora ainda. Me assiste ali parada por um instante, então junta as mãos em conchas e grita:
- Sabe, acho que vou ficar com aquela prancha, estou mesmo precisando de uma nova!
Movo-me um tanto rígida e Nora espera um pouco, antes de me dar as costas e fugir. É só quando saio por completo do mar, que compreendo sua tática. Ela passa direto por meus pertences, sem sequer olhar para eles. Imagino que esteja realmente satisfeita, já que conseguiu e, com muita facilidade, me tirar da água, exatamente como queria. Volto a sorrir, é involuntário e como poderia não fazê-lo? Nora é linda e esperta e, ao que parece, também gosta de surfar. Então, em nome de Deus, pergunto-me novamente, como entre tantas pessoas que odeio e ele sabe que odeio muitas, eu poderia escolhê-la?! Isso não faz sentido e não acredito que um dia fará. Desnorteado, de uma maneira que nem consigo começar a descrever, enfio minhas mãos nos bolsos e encaro a garota que um dia irei matar, desaparecer no horizonte.Obrigada por ler esse capítulo!
Por favor, responda este pequeno questionário para me ajudar com a construção dessa história. Segue o link e muito obrigada! ❤️ https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSc_VCoWPlYe-UmaqkmRnFZvSmR-IsXzJI9apzDW_QXhGuRh8Q/viewform
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Uma barganha com a Morte
FantasyNora Ray era a garota perfeita. Linda, inteligente e a rainha da escola. Confiante e dedicada, ela tinha apenas um objetivo em sua vida. Ser aceita na universidade de Oxford, onde sua mãe havia estudado. Seus sonhos, no entanto, foram completamente...