Liberdade e salvação

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      Se apegar é uma escolha cujo a qual o único resultado é a angústia.

Nikolai acreditava fielmente nisso, de corpo e alma. Para Gogol, relações eram como gaiolas que o prendiam a experimentar o verdadeiro sabor divino da liberdade. Sentimentos, emoções, opiniões; o prendiam em sua própria humanidade e atrofiavam suas asas, o impedindo cada dia mais de retornar para os céus. Nikolai jamais seria capaz de se apegar, pois sabia desse fato: Amor, ódio, tristeza, solidão ou euforia. Nada disso lhe cabia. Eram coisas de humanos, e nenhum humano seria verdadeiramente livre enquanto sentissem empatia. Eram uma fila de pássaros engaiolados, tentando salvar uns aos outros de um destino praticamente inevitável; a solidão.

      Fyodor não era adverso à ideia de Gogol. Exceto que, diferente dele, Dostoyevsky tinha a missão exclusiva de salvar a humanidade de seu sofrimento, que atuava tanto como vítima quanto como causador. Uma auto destruição catastrófica que deveria e seria evitada. Era nada além de um messias, um salvador que descera dos céus para ajudar aqueles que mais precisavam. Um herói divino, um anjo. E para ele, apego não era uma opção viável. Se importava, sim, com os humanos, mas ter amigos era impensável. Não deveria diferenciar os seres uns dos outros, não deveria ter favoritos, não deveria ser amigo deles.

      Nikolai queria fugir de sua prisão, Fyodor escolhia ficar para espalhar a salvação. Dois lados da mesma moeda, duas almas perdidas, capazes de fazer de tudo por seus objetivos.

      Tudo, menos evitar um sentimento. Porque, no fim, não importava o que diziam um para o outro. Não importava em que acreditavam. Não importava o que queriam. Fyodor e Nikolai se entendiam, como ninguém mais entendia. E isso, por si só, já era amor. Fyodor jamais seria capaz de salvar a humanidade, porque, primeiro, desejava ser capaz de conceder a liberdade para Nikolai. Este que, por outro lado, jamais seria capaz de ser livre. Pois, como aqueles que tanto julgava, se apegara por um anjo de cabelos escuros, e tentaria de tudo, de tudo, para salvá-lo de sua gaiola.

      Seus sentimentos o prendiam em sua humanidade, e deveriam aceitar que jamais alcançariam seus objetivos enquanto estivessem juntos, enquanto fossem humanos. Mas tudo bem, porque amor é sacrifício. E escolher se sacrificar era o ato mais livre e angelical que poderiam realizar.

      As notas graves do violoncelo ecoavam pelo teatro. Uma peça, até então, solitária. Os dedos pseudo esqueléticos pressionavam as cordas com uma suavidade anormal, enquanto os outros membros roçavam o arco pelo instrumento, de modo que a melodia dominasse o ambiente em um tom melancólico e quase divino.

      Fyodor sentia, no âmago de sua alma, a dor. A dor da vida, a dor da perda, a dor do amor. Todas elas, perturbadas pela melodia grave que ele mesmo tocava, como uma maldição lançada em si mesmo.

      Mas não demorou muito para um violino, agudo e pacífico, começar a se mesclar com sua acústica. Os sons suaves e doces, se combinavam com os tons amargos de seu instrumento e formavam uma eufonia inexplicável. Ao seu lado, Nikolai o completava.

      Juntos, contavam uma história. Uma história sobre um anjo sem asas, que, ao conhecer um pássaro preso, abdica de sua missão para libertá-lo, ao mesmo tempo que a ave tenta, a todo custo, o levar para o paraíso novamente.

"— Sou livre, pois ser recluso é minha escolha. As asas tão pouco me eram úteis, meu único e principal objetivo é salvar os pecadores. Entretanto, admito que sua presença me cativou de maneira desagradável. Não terei paz, enquanto não te ver voar, Kolya. — O santo proclamou, estendendo ao semi-pássaro, suas próprias mãos, tentando o alcançar, em vão.

— Seu discurso não cabe somente a você. Jamais poderei ser livre, pois, enquanto meu corpo estará sobre céus, minha mente estará em você. Sua presença também me cativara, e é doloroso admitir que, mesmo que minha gaiola seja aberta, eu não poderei me-ir, enquanto não recuperar suas asas. Enquanto você não for livre comigo."

      É o fim da melodia.

— Fedya. — Os fios brancos, trançados de maneira quase perfeita, se moveram para olhar o parceiro, que, silencioso como sempre, apenas olhou com atenção para o homem pálido. — O que você acha sobre amor?

      Dostoyesvky desviou o olhar, olhando reto para a floresta densa. A neve interminavelmente branca caia em frente aos seus olhos, rasgando sua visão da maneira mais pacífica que conseguia imaginar. O inverno era bem cruel naquela época do ano, mas Fyodor era bem acostumado com o frio, então não seria um grande problema. Além disso, tanto ele quanto Nikolai estavam bem vestidos, com 4 camadas de agasalhos, luvas, cachecóis e todo tipo de acessório quentinho que conseguiram buscar dentro de sua casa.

      Suspirou, assistindo seu hálito virar fumaça por conta da baixa temperatura. Levou suas mãos, enluvadas, até sua orelha, prendendo uma mecha de cabelo ali antes de, pôr fim, pegar fôlego para responder a pergunta feita a ele.

— Acho uma bobeira.

      Nikolai riu, soltando fumaça gélida por todo o ambiente.

— Posso ser bobo por você?

      As bochechas do russo se esquentaram, contrastando o vermelho tanto com a neve quanto com seu próprio rosto, tão pálido quanto. Escondeu o rosto sobre o cachecol ligeiramente maior, movendo as mãos até as palmas de Gogol.

— É claro que pode.

— Você também é bobo!

      Apertou a mão do pálido, sorrindo de levinho pelo 

— Sou um bobão.

O pássaro e o anjo; FyolaiOnde histórias criam vida. Descubra agora