Crew

01

O líquido vermelho viscoso forma uma poça aos pés de Nova antes que ela possa evitar sujar suas botas do Alexandre Birman.

Ouço seus resmungos e xingamentos, a bota clara agora era uma linda mistura de tinta e algum tom entre branco e amarelo. Não sei exatamente qual é. Seus olhos claros se voltam para mim e reviram ao ver que não me mexi.

-Será que dá pra você se comportar, Crew?- ela exala bruscamente marchando até a cozinha novamente.- Mamãe volta do hospital hoje, e papai está muito animado com a recuperação dela.- minha irmã fala comigo.- Pode tentar ser normal apenas hoje?

-Aham, sim, claro.- digo sequencialmente, como sempre falo.

-Apenas se comporte, seja legal com ela.- a garota se inclina para tocar meu braço. Desvio rapidamente. Não gosto dela me tocando. Não gosto de ninguém me tocando. Nova suspira.- Desculpa, só pega leve, ok?

Olho para ela inexpressivo, não reparo quando ela sai da sala e se dirige a frente da casa, provavelmente para receber Jeremy e Lowen. Ando até a pia, contando meus passos. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Lavo a pequena franela que se acomoda ao lado da lava-louças. A água percorre meus dedos e toca o pequeno corte no meu dedo indicador direito, a mistura do detergente e cloro fazem com que a ardencia seja deliciosamente incessante. A água fica em um tom de vermelho ralo, fazendo com que a flanela branca se tinja um pouco com a cor.

Ouço Nova gritar um "Mamãe!" animado e a voz de Lowen é quase como um sussurro quando pergunta por Ivy. A menor passa correndo pelo corredor enquanto eu ainda me empenho em limpar a aquela tinta do chão. Pego o bolo que minha irmã encomendou, o dispondo sobre a mesa após colocar as taças de vinho e os pratos. Pego os materiais e os guardo no armario da lavanderia e logo sigo rumo a parte de cima da casa para pegar minhas coisas e finalmente ir embora. Tenho turno hoje a noite.

Passo por eles e os vejo se abraçando, vejo a querida Lowen com a veia atrelada a uma bolsa de algum líquido transparente. Ivy se agarra ao pescoço de Jeremy rindo enquanto Nova empurra a cadeira de rodas de Low até a sala para que ela veja o que fizemos. As risadas são contagiantes, e é nesse momento que percebo que minha permanencia aqui esta saturada, preciso ir para casa. Minha casa.

Minha vida nunca foi muito comum ou em paz, fui uma criança quieta, um adolescente invisível e um adulto estranho, não tenho o talento de aproveitar a vida como Nova tem. A sociedade tem o péssimo costume de não aceitar bem crianças que não tem o desejo mórbito em fazer parte de ciclos sociais. Ter me mudado assim que fiz 18 anos também é um motivo para ser um tanto quanto distante de Jeremy e Lowen. Não frequento festas, não tenho amigos, e por ser médico minha rotina não me permite os prazeres dessa vida. Os únicos amigos que tive na vida morreram em um tragico acidente, e o único que sobrou cometeu suicídio depois disso. Como meu pai diria, somos uma família de crônicos, apenas esperando quando vai ser a próxima tragédia. Quem sabe não seja com Lowen.

Balanço a cabeça expulsando esses pensamentos. Sempre faço isso, fico divagando com personagens morrendo. É o que eu faço.

Escrevo. Sou escritor.

Apenas no meu tempo livre. A vida em plantões noturnos pode ser bem solitária.

Abro a porta do que costumava ser meu quarto e encontro um escritório com vários livros, possivelmente, de Lowen. Jeremy faria tudo por ela. Vejo seu computador sobre a mesa organizada cuidadosamente, suas canetas e anotações empilhadas dentro de uma caixa. Quando Lowen chegou em minha vida acreditei que poderíamos ser uma familia, que todo aquele fazio que eu sentia seria finalmente preenchido por alguma emoção além da perda constante e latejante.

Puxo sua cadeira, sentado-me nela e apoiando o queixo nos cotovelos em cima da mesa. Olho ao redor vendo vários livros de escritores conhecidos, Lowen Ashleigh, Jimmy Ford, Caly Emerson, Laura Chase e ao fim, Verity Crawford. Desvio o olhar desse último, não me interressa.