De novo acordara atrasada. Não conseguiria chegar a tempo no trabalho e mais uma vez seu chefe olharia torto, escreveria na sua caderneta e pediria milhares de tarefas para serem feitas. Era difícil chegar cedo no trabalho, sempre era a mesma história. Já fora notificada diversas vezes e sempre dava várias desculpas. Já estava cansada dessa rotina. De novo tivera o mesmo pesadelo. Não adiantava ter feito terapia no ano passado, ele nunca iria embora. Sempre aquela noite a perseguiria. Já trocara de cidade. Saiu da metrópole mais movimentada e veio parar numa cidade pacata, sem muito movimento, onde todo mundo se conhecia e ficava bisbilhotando a vida do outro. Era disso que ela precisava. De gente para vê-la e se acontecesse alguma coisa, poderia ajudá-la.
Desde que mudara para o local, fazia um ano, sentia-se segura. Nos primeiros dias que posteriores ao ocorrido, vivia em vigilância constante em seu apartamento, na capital, mesmo quando sua mãe estivera por lá. Não conseguia dormir, qualquer barulho a assustava e quando passeava na rua, obrigada pela sua mãe, ela sentia que havia alguém a observando. Eram tantos rostos. Sentia-se exposta e ameaçada. As idas na terapia não havia ajudado. Evitava o olhar de piedade de conhecidos e vizinhos, até que não aguentara mais e falara para a sua mãe que precisava se afastar de tudo, ter uma nova vida, fugir daquilo tudo que a cercava. Foi quando lembrou da sua tia e de quando gostava de visitá-la quando pequena. Fez uma ligação, conversaram e ficara tudo acertado. Alugara o apartamento, despachara suas coisas no caminhão de mudanças e foi dirigindo até o seu destino.
Com o dinheiro do aluguel, alugara uma pequena casa próximo ao centro e também próxima ao seu trabalho. Era uma vergonha, ela sabia, morava tão perto e chegava sempre atrasada. Não tinha amigos, apenas a vizinha do lado que cuidava de uns 20 gatos e sua tia que morava mais afastada, no meio do mato.
Em frente à Rubens & Falcon Advogados, olhou-se no espelho para saber se estava tudo legal. Seus longos cabelos negros de outrora deram lugar a um corte chanel que modificara a sua aparência, dando um ar de mulher madura e sofisticada. Era disso que precisava. Trabalhava de secretária particular dos dois sócios, Rodrigo e Kléber. Era um trabalho tranquilo em relação ao outro que tivera, onde tinha um cargo elevado numa empresa de perfumes e cosméticos de alto padrão. Ganhara o triplo que ganhava na advocacia, tivera muitas mordomias, mas o trabalho era mais intenso e muito mais estressante. Quando resolvera ir para aquela cidade, dera um Stop em tudo aquilo. Tinha juntado uma boa grana, alugara o apartamento e vivia bem na sua casinha com o seu grande cão Bernardo, um vira-latas desengonçado que a adotara assim que chegara à cidade.
Respirou fundo e entrou pela porta de vidro fumê e deu um "olá" para a recepcionista. Olhou para os lados para ver se um dos chefes chegara, pois era um porre quando Kléber estava na empresa. Rodrigo era o que mais ficava fora, viajando, atendendo seus clientes na Capital e o Kléber ficava na empresa cuidado dos novos contatos e dos empregados e ficava de bituca para ver quem saia de linha. Adorava pegar no pé dela e viva dizendo que só lhe dera um emprego por consideração a tia dela. Como era um emprego que pagava bem e ficava próximo a sua casa, aprendera a relevar e nunca discutir. Colocava um sorriso falso no rosto e mostrava eficiência em tudo o que fazia. Sabia que era por causa disso que eles não a despachavam dali. Era muito boa no que fazia.
Deu uma olhada na sala dele e ele não estava por lá. Ufa. Correu para a sua sala e ligou o notebook. No dia anterior, saíra mais tarde de lá por conta de uma remessa de emails e processos que recebera. E hoje estava esperando receber uma outra e queria terminar o mais rápido possível.
Ligou na cafeteria "Coffee law" e pediu o de sempre. Café e broinhas de milho. Para espantar o mal humor e o sono, era só tomar uns goles de café e morder uma deliciosa broinha de milho. A cidade podia ser pequena, de poucas ruas, mas o seu centro comercial tinha tudo o que necessitava. Quando precisava de algo maior ou de um serviço especifico, viajava até a cidade vizinha que ficava alguns quilômetros, mas evitava de sair de lá. A cidadezinha tornara-se seu porto seguro.
Passou o tempo resolvendo alguns pepinos no escritório e nem deu uma olhada na hora. Assustou quando bateram na sua porta e Mariza enfiou a cabeça pelo vão e disse um "Olá".
- Cléo, desculpa te incomodar, sei que está ocupada e tem muitas coisas para fazer, mas já deu uma olhada no relógio? Já são 14:00 hrs. Passou do seu horário de almoço e você já está um palito e daqui a pouco o vento vai te levar embora.
Mariza, uma senhora de 65 anos, mas com um corpo de dar inveja a qualquer jovenzinha e um sorriso enorme e caloroso, era a responsável pelo financeiro da empresa. Trabalhava no setor desde o início e era muito respeitada pelos dois sócios. Também cuidava deles e desde que começara a trabalhar ali, também passou a cuidar dela. Divorciada, dizia que já teve sua experiência de casada, agora gostaria de viver a solteirice e estava nessa vibe há 5 anos. Os filhos moravam em São Paulo e vinham visitá-la duas vezes por mês.
- O trabalho me consumiu. Não sei como uma empresa tão pequena pode ter tanto problemas - disse com um suspiro. Peguei minha bolsa e me dirigi à porta - Obrigada, Mariza, percebi que estava com fome mesmo.
- Prometi para a sua tia que cuidaria de você, menina. De novo, não dormiu bem essa noite?
- Dá para notar? Tive alguns sonhos ruins, mas nada tão grave.
- Eu tenho uns florais bons para o sono. Vou trazer uns para você. E não adianta falar que não vai tomar, você precisa. O seu trabalho é cansativo. Se os dois me deixam exausta, imagina para você que trabalha diretamente para eles?
Não adiantava recusar, Mariza iria bater na mesma tecla e não iria me deixar em paz.
Eu almoçava sempre na minha casa. Achava errado pagar por comida no restaurante, sendo que na minha casa tinha de monte. Bernardo me recebeu com latidos de alegria e muita baba. Tentei conter o cachorrão, mas ele era mais forte do que eu. Acabei prensada na parede e ele me lambendo os ombros e o queixo. Eca, teria que tomar um banho e mudar de roupa.
Entrei em casa e pus a bolsa no meu sofá vermelho. A casa era pequena, mas aconchegante. A sala dividia espaço com a copa e a cozinha americana. Havia dois quartos entre o corredor e o banheiro no final dele, próximo a área de serviço. O quintal era espaçoso e eu aprendi a ter o hábito de cultivar algumas plantas e flores. Tinhoso estava entre elas, naquele momento. O gato ruivo e endiabrado da vizinha gostava de invadir o meu quintal para fazer suas necessidades e mastigar as minhas plantas. Já tentei despachá-lo de lá, mas ele me venceu pelo cansaço. Para ser sincera, ele me fazia companhia às vezes e eu gostava de animais.
Tomei um banho rápido e pus minha comida no microondas. Liguei a secretária eletrônica para saber se tinha algum recado. Não tinha. Antigamente, em São Paulo, ela não parava de ter recados. Aqui o máximo que eu tinha era uma ligação perdida da minha mãe ou da minha irmã. Só. Nunca pensei que uma vida simples e calma me faria tão bem.
Sentei no sofá com o prato de comida na mão e o suco de laranja pus na mesinha central. Liguei a minha pequena TV Full HD de 40' e sintonizei no jornal local. Alguns acidentes na estrada causados por jovens bêbados e imprudentes, o prefeito iria fazer algumas obras na rede de esgoto da cidade, o novo aeroporto para pequenos aviões estava quase pronto compunha o jornal de hoje. Nada fora do normal.