UM POUCO MAIS DE SEIS ESTAÇÕES ATRÁS
O céu fosco e glacial da manhã de inverno pesava sobre Espinho. O chão e as árvores embranqueceram-se pela nevasca da noite anterior, o gato listrado caminhava com leveza pelo resultado. Sua mente voltava a mesma cena e lugar toda vez que suas almofadinhas tocavam o mármore sólido que a neve fazia do chão.
Uma noite de lua cheia a não muito tempo atrás quando seu aprendiz morreu. Seus bigodes tremeram com a lembrança vívida dos gritos viscerais cortando o ar noturno. Culpou o gesto no frio extremo.
Os uma vez majestosos pinheiros sofriam pela estação, seus galhos nus recobertos por uma matéria branca, como se tivessem desistido de resistir. Espinho tinha vontade de se deitar e desistir também. Mas era o único de sua colônia que dominava a medicina, agora que seu aprendiz o tinha deixado para sempre. Mesmo não sendo a primeira vez que essas mesmas palavras ecoavam em seu crânio, ele ainda sentiu seus olhos pesarem e sua boca amargar. Chuvisco me deixou para sempre, pensou de novo, experimentando os efeitos do luto em sua mente e corpo. Chuvisco morreu.
O clima estava tão impiedoso que sentia a neve pesada soterrar sua alma tal qual soterrava a grama abaixo dele. Dava passos apressados entre os pinheiros esqueléticos da floresta arrefecida, na esperança de que a agitação de seus músculos pudesse espantar o frio que seus pelos longos não oprimiam.
—Não saímos do acampamento após uma nevasca por um motivo. — ele resmungou baixinho enquanto o terreno lhe promovia dificuldades de locomoção. Se amaldiçoou por ter decidido procurar por plantas medicinais. Certamente algumas só cresciam no inverno, mas sempre era raro achar algo valioso vivo em meio a tanto pálido. — Neve estúpida. Estação Fria estúpida. Ervas estúpidas.
Esticou seu pescoço para observar o sol no céu, obsoleto ao frio. Abriu a boca para dar um sibilo de desgosto, mas foi interrompido pela voz de seu aprendiz ecoando em sua mente. Suas últimas palavras.
Sentiu todas as energias restantes sendo convertidas em mal-estar. Parecia haver uma nuvem gigantesca e escura se formando ao seu redor e lhe roubando toda a vitalidade, se agarrando a suas patas e pairando sobre os ombros sobrecarregados.
—Não tenho tempo para isso, não tenho mesmo — Rosnou entre os dentes.
Cada passo se tornava mais pesado e seus sensos já não observavam a floresta, apenas o que fora Chuvisco. Agora que seu único aprendiz estava morto e enterrado, seus próprios ossos gastos e danificados, só lhe restava recordar a tragédia entre as respirações ansiosas.
O acampamento da Colônia do Sul se localizava em um rochedo na lateral de um morro. Havia várias fendas em sua base, onde os gatos do grupo dormiam de noite e se reuniam de dia. Um dos buracos continha um pequeno lago em seu interior, e lá viviam os guardiões das ervas do grupo, gatos que conhecem um pouco de medicina e usam seus saberes para ajudar os feridos.
Os felinos da floresta acreditavam que viravam espíritos em sua morte. Os mais puros em vida virariam Espíritos Marinhos, entidades que se manifestam na água, principalmente nas neblinas. Ela rege toda a vida na floresta, nada fazia mais sentido que todos voltarem a ela após o fim. Gatos medicinais tinham lagos em suas tocas como meio de comunicação entre Espíritos Marinhos e vivos. Espinho realmente odiava seu lago, já tinha perdido a conta de quantas vezes inundara sua toca durante seu sono.
Seu aprendiz tinha nove estações de vida quando uma doença o levou. As vezes a ironia de ser um guardião das ervas e perder alguém para algo que você estava ensinando a remediar o atingia quase tão forte quanto a perda em si. A dor da culpa por não ter feito mais, o curado de alguma forma, lhe perseguia desde o momento em que o corpo do aprendiz fora lavado no Rio Resplandecente.

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Erva-Daninha
AbenteuerUma história sobre a vida de uma família de gatos na floresta extremamente inspirada em gatos guerreiros. Dente de Leão nasceu e cresceu conformada com a ideia de ver seus irmãos como possuidores de um dom médico raro entre gatos. Mesmo com certa s...