A Paixão Tem Memória

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Memórias nem sempre se dissolvem com o passar dos anos. As cores de um amor podem não desbotar mesmo diante da materialidade sufocante da rotina. Enquanto os acontecimentos – políticos, sociais e familiares – se sobrepõem a todo o resto, a impossibilidade de serem mais do que já foram, apesar de justificar o afastamento, não anula a saudade.

Foi pensando nela que Simone Tebet conferiu as horas na tela acesa de um celular que não utilizava há meses, o aparelho não tinha qualquer propósito desde que haviam decidido findar aquele caso extraconjungal.

Mas essa era uma forma bastante insensível de classificar o relacionamento delas. Tudo bem que era derivado de uma traição, da parte de Soraya absolutamente indefensável: Carlos César nunca havia sequer sonhado em lhe ser infiel. Além de apaixonado, era um marido exemplar. Já para Simone, a prática se mostrava mais conveniente, se chumbo trocado não dói, chifre também não.

Dentro de tal conjuntura, existia, portanto, uma óbvia incompatibilidade: a primeira se sentia culpada por enganar o outro, a segunda é consumida pela culpa de mentir para si mesma.

A ministra se iludia, divagando em cenários irreais, onde o seu casamento ainda era uma parceria, havendo respeito e consideração. Nenhum escândalo tinha acontecido em 2015, ela não precisou lidar com a vergonha de se ver exposta a julgamentos e comentários alheios. Rejeitava a verdade para conseguir manter a fachada intacta, ainda assim, as rachaduras se acumulavam na base daquele edifício condenado.

Se acreditasse em astrologia, saberia que essa é uma característica dos piscianos: por mais intuitivos que sejam, se perdem em divagações subjetivas que não levam a lugar algum. Se acomodam na tristeza como se fazendo dela sua zona de conforto, não pudessem mais ser machucados.

A geminiana, em contrapartida, era uma avalanche. Uma abundância de mulher em eterna ebulição. Como uma dita metamorfose, a de Seixas e não de Kafka, Soraya é hoje, não é amanhã. Dona de princípios, o que muda não é a sua ideologia, mas a visão de mundo que se espera dela. Quem vive de passado é museu, e a onça marruá está mais para um samba-enredo atual.

E por sinal, havia um maldito engarrafamento que congestionava o trânsito até o sambódromo que ficava localizado na Praça do Papa.

O motorista de aplicativo havia desistido de estabelecer uma conversa, achou a passageira um tanto quanto esnobe. "Esse povo só porque mora em prédio de bacana age como se fosse o próprio presidente da república."

Simone não trocou mais do que um breve cumprimento por medo de ser reconhecida. Apesar da máscara veneziana prata, do vestido justo em um tom de azul e do blazer branco com duas aberturas na lateral, sem contar o penteado que ela nunca havia usado, os fios presos por simples adereço – uma presilha entalhada com madrepérolas –, tinha pavor de ter o seu disfarce descoberto.

Antes passar por antipática, do que sair em várias matérias jornalísticas de conteúdo pseudo-político, ou pior, num tweet.

Estava sendo irresponsável. No mínimo. "Uma senhora de quase 54 anos se prestando a agir desse jeito pra ver uma mulher que nem é sua. Parabéns, Simone Tebet...! Você se superou!"

Ainda teve que mentir para Eduardo. O que não era grande coisa, mas dona Fairte não pareceu comprar a desculpa de que ela estava com uma virose repentina e não sairia de casa pelas próximas 24 horas.

— Minha filha, ontem você estava boazinha.

— Eu sei, mãe. Deve ter sido algo que eu comi. Vou descansar e aposto que amanhã estarei me sentindo ótima.

Descansar assistindo o desfile da Igrejinha só pra ver ela passar toda linda e ter o prazer de aplaudir aquele monumento. Afinal de contas, cada um repousa como pode.

A Paixão Tem Memória [Simone x Soraya]Onde histórias criam vida. Descubra agora