não era algo. era alguém⚘

36 1 2
                                    

"Mas, Eve, como assim?"

Eu sei, posso ter deixado vocês se questionando, mas essa também foi a minha reação quando elas se assumiram como um casal.

Eu devia ter uns seis, quase sete anos quando aconteceu. Talvez estivesse acontecendo desde os meus seis anos, esses encontros… não sei. Mas a imagem delas de mãos dadas enquanto me observavam com expectativa no olhar ainda é bastante memorável para mim.

Gabrielle.

Os olhos da mamãe sempre brilhavam na sua presença, os de Gabrielle também — não que tenham parado, pois ainda continuam. E talvez até mais. Mas eu era muito pequena para perceber. Hoje eu presto mais atenção nesses detalhes. Seus olhares, a maneira carinhosa como se tocam, como se beijam. Como protegem uma à outra. O amor é palpável.

Espero um dia encontrar um amor tão bonito assim.

Gabrielle, ou Gabi, como eu a chamava, foi um ponto de conforto instantâneo após a mudança de escola.

Eu ansiava por suas aulas. Por ouvir suas histórias e suas recomendações. Pelos livrinhos que ela me emprestava, mesmo eu ainda não sabendo ler, — mamãe lia para eu dormir — e por sua companhia na hora do lanche.

Eu não tinha companhia na hora do recreio, então normalmente eu ficava na biblioteca ou no pátio, sozinha, sentada debaixo de uma árvore com um livro de colorir no colo.

Era bem chato e um pouco triste, mas passou a ser divertido quando Gabi se juntou a mim na sombra da árvore e me contava sobre suas aventuras nas terras americanas.

No início, eu não entendia o motivo dela preferir passar seus intervalos comigo, uma criança, e não com os adultos na sala confortável dos professores. Anos depois, ela me confessou que não gostava de me ver lanchando sozinha, pois lhe fazia lembrar de sua infância solitária.

Com o passar do tempo, fiz amigos, mas no início era só eu e ela debaixo da árvore.

Minha mãe e Gabi se conheceram pessoalmente numa sexta-feira chuvosa com previsão de tempestade.

Minha mãe se atrasou naquele dia. De longe, eu a observei descer do carro parcialmente molhada e muito afobada, lutando contra o vento enquanto segurava nosso velho guarda-chuva azul.

Gabi estava ao meu lado, com as mãos protetoras e carinhosas sobre os meus ombros.

Mamãe se aproximou às pressas com aquele olhar de "sinto muito, querida". Me pegou no colo e depositou um beijo estalado na minha bochecha.

— A estrada está péssima. Já caíram duas árvores! Tive que pegar um atalho. - ela explicava.

Gabi olhou para ela com um olhar que eu só pude entender anos depois. Era um completo choque. Fascínio.

Um olhar de puro deslumbramento.

— Mamãe, essa é a Gabi.

Um trovão ressoou forte no céu junto a um clarão que refletiu nos olhos da minha mãe.

— Gabi...?

— Gabrielle. - ela se apressou em estender a mão. - Professora de literatura.

Mamãe aceitou a mão dela e eu observei aquela troca com um sorrisinho no rosto. Eu pensei: "talvez elas possam virar amigas."

— Essa Gabrielle. Então você é a responsável pela pilha de livros que não para de crescer lá em casa.

As bochechas dela coraram e ela afastou a franja dos olhos.

— Mamãe, Gabi ficou comigo até agora esperando você.

— E nós temos que agradecer, certo? Obrigada, Gabrielle.

— É, obrigada, professora Gabi.

Gabrielle apenas sorriu. Sempre tão modesta.

— Bom, é melhor a gente ir. A chuva está piorando.

Mamãe me ajeitou em seus braços, me cobrindo com uma capa de chuva.

— É melhor eu ir andando. - Gabi se pronunciou.

Você vai a pé? - mamãe indagou levemente indignada. - Venha com a gente. Levo você em casa.

— Não é necessário...

— Aceita, professora Gabi. - eu pedi suplicante, usando da técnica do Gato de Botas. Nem minha mãe resistia quando eu fazia isso.

— Tudo bem.

E então, entramos no carro. O caminho foi em silêncio, a não ser pela música infantil que nos acompanhou durante o curto percurso.

Mamãe deixou Gabi em casa. Sua casa era fofa. Parecia com o chalé da professora Honey do filme Matilda.

Quando nos despedimos, Gabi me beijou na bochecha e olhou para minha mãe. Ela já a olhava e o encontro das miradas foi junto aos sorrisos tímidos de seus rostos. Minha mãe nunca ficava tímida, mas eu aprenderia com o tempo que apenas Gabi teria o poder para fazer tal coisa.

— Que falta de educação a minha! Eu não perguntei seu nome.

— É Xena.

— Xena. - ela pareceu testar o nome em seus lábios. - Diferente.

— É o que dizem. - e sorriu. Aquele sorriso.

Gabrielle correu em direção a sua casa e antes de entrar deu um tchauzinho. Nós duas retribuímos rapidamente.

Nas semanas que se seguiram, Xena e Gabrielle não se encontraram mais, e eu, em minha inocência juvenil, não percebi que algumas coisas já começavam a mudar.

Mamãe descobriu que Gabi me fazia companhia durante o recreio e com isso passou a colocar em minha lancheira lanche para nós duas.

Mamãe era péssima na cozinha, mas se esforçava em fazer algumas coisinhas gostosas, como meus bolos favoritos, tortas e até alguns salgadinhos. E ela vinha melhorando, mas isso não quer dizer que eu não encontrava as panelas queimadas depois.

Em uma manhã, enquanto Gabi e eu comíamos uma tortinha de morango com chantilly, questionei o porquê dela ter decidido se mudar e lecionar em uma escola tão longe de casa.

— Nem sempre o lugar onde nascemos é a nossa casa, entende?

— Como assim?

— Por exemplo, você mora com a sua mamãe. Vocês tem um lar, certo? Você gosta dele, sente-se completa. Seu coraçãozinho está feliz.

— Você não se sente feliz, Gabi?

— Eu ainda não achei o meu lar.

— Você acha que o seu lar é aqui?

— Às vezes, meu bem, um lar não é um lugar e sim uma pessoa.

— O meu lar é a minha mamãe, então?

— Claro. Pode ser.

— Mas você gosta daqui?

— Sempre senti que algo estivesse me esperando bem aqui.

Não era algo, Gabi. Era alguém.

Minha mãe.

Xena.

Acredito que ela também estivesse esperando por você. Desde sempre.

𝒎𝒐𝒎𝒔 ⚘ 𝒙𝒆𝒏𝒂&𝒈𝒂𝒃𝒊Onde histórias criam vida. Descubra agora