𝒳𝒳𝐼𝒳

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Surya

Quebrar o pescoço de um javali não era tão difícil quanto parecia.

Olhei para o animal morto com uma mistura de satisfação e repulsa. Seu sangue escorria pelos meus ombros, misturando-se com a terra e o suor que me cobriam. Meus músculos ainda estavam tensos, e minha respiração ofegante denunciava o esforço recente. Fazia dias que eu não dormia de verdade, e a exaustão pesava sobre mim como um manto invisível.

Ao chegar ao nosso improvisado acampamento, encontrei Azriel dormindo. As sombras o cercavam, formando um cobertor sombrio que parecia proteger seu sono. Com um movimento decidido, joguei o javali aos seus pés, o som da carne pesada batendo no chão o despertou. Seus olhos fixaram-se no animal morto, avaliando a situação.

— Teremos jantar — eu disse, minha voz quebrando o silêncio da floresta. — Por mais dois, ou três dias.

Azriel ergueu o olhar para mim, uma pergunta silenciosa em seus olhos.

— Você se transformou? — ele perguntou, seu tom carregado de preocupação. — De novo?

— Não — respondi, e era a verdade. — Eu sou muito mais capaz do que imagina.

Sentando-me por um momento, sentindo o peso da caçada em cada fibra do meu corpo, peguei um pedaço do tule rasgado do meu vestido e enrolei-o em volta da cabeça, tentando afastar o suor e a sujeira.

— É religiosa? — Azriel perguntou, observando meu gesto com curiosidade.

Encarei-o por alguns segundos, avaliando sua expressão antes de responder.

— Estamos em solo sagrado.

— Essa não foi a pergunta que eu fiz — ele insistiu, seu olhar penetrante como sempre.

— Sim — respondi, ríspida, a memória do Caldeirão queimando em minha mente. — Eu o vi, o Caldeirão. Eu sei o que ele pode fazer, eu sei a imensidão que seu poder tem.

Respirei fundo, sentindo o peso das lembranças. Passei anos orando pela Mãe nos calabouços, suplicando por ajuda, implorando pela morte em diversas ocasiões. Mas foi o Caldeirão que nos libertou de verdade.

Desembainhei a faca que roubei de um dos guardas de Tamlin, começando a limpar o javali para prepará-lo.

— Surya — a voz de Azriel era fria, cortante como o inverno.

Ergui o olhar para ele. Seus olhos dourados e cintilantes, escondidos entre as poucas sombras que o rodeavam, refletiam perguntas que ele não ousava fazer em voz alta. Cada olhar trocado entre nós era um campo de batalha silencioso, onde nossas verdades e medos colidiam.

— O que mais você viu? — ele perguntou finalmente, sua voz suave, mas carregada de uma intensidade que fazia meu coração acelerar.

Eu hesitei por um momento, as palavras presas na garganta. Havia tanto que ele não sabia, tanto que eu não queria admitir nem para mim mesma. Mas, no fundo, sabia que precisávamos dessa franqueza se quiséssemos sobreviver.

— Eu vi o que precisamos fazer para vencer — respondi, minha voz firme. — E faremos isso juntos, Azriel. Querendo ou não, somos uma equipe agora.

E, com isso, voltei minha atenção para o javali, sabendo que as batalhas que enfrentávamos não eram apenas contra os inimigos lá fora, mas também contra os demônios dentro de nós.

☽ ☾     ☽ ☾     ☽ ☾

O crepúsculo se estendia pela floresta, e a luz esmaecida tornava as sombras mais longas e ameaçadoras. A mente estava cada vez mais confusa, uma neblina densa e impenetrável parecia se instalar em meus pensamentos. Sentia-me puxada em direções contraditórias, uma parte de mim ansiando por liberdade, enquanto outra lutava para manter o controle.

Olhei para Azriel, que ainda estava lutando para se manter em pé, a dor evidente em seus olhos. Precisávamos continuar, mas seu estado dificultava nosso progresso.

— Azriel — chamei, minha voz trêmula. — Eu... posso me transformar. Assim poderemos continuar mais rápido. Você precisa descansar.

Azriel parou, sua expressão se fechando. Ele se aproximou, cada movimento carregado de uma autoridade silenciosa.

— Não — ele disse firmemente. — Você sabe que isso não é uma solução, Surya. Transformar-se em fera está te afetando. Não podemos arriscar.

— E o que sugere, então? — perguntei, a frustração transbordando. — Continuar vagando sem rumo, esperando que a sorte nos salve?

— Precisamos seguir para o norte — respondeu ele, seu tom mais calmo, mas igualmente resoluto. — A corte crepuscular não está longe. Thesan pode nos ajudar, ele tem influência suficiente para garantir nossa segurança e nos levar de volta à corte noturna.

Balancei a cabeça, a raiva e a confusão em guerra dentro de mim.

— Não. Devemos ir para o sul — insisti. — A corte invernal é nossa melhor opção. Meu tio Kallias nos abrigará, ele é o Grão-Senhor da Corte Invernal. Conheço aquele território, sei que estaremos seguros lá.

Azriel suspirou, passando a mão pelos cabelos escuros. Seus olhos dourados estavam fixos nos meus, um conflito evidente em seu olhar.

— Surya, seu tio pode ser poderoso, mas o caminho até a corte invernal é longo e perigoso. Não estamos em condições de enfrentar isso agora. Thesan está mais próximo, e ele pode nos ajudar a nos recuperar antes de seguirmos para qualquer outro lugar.

Senti uma raiva impotente crescer dentro de mim. Por que ele sempre tinha que ser tão racional, tão lógico? O desejo de me transformar, de deixar a fera assumir o controle, era quase irresistível. Mas, ao mesmo tempo, havia algo nos olhos de Azriel, algo que me segurava:

— Você acha que eu não sei disso? — explodi, minha voz tremeu. — Eu só... estou cansada, Azriel. Estou cansada de lutar, de fugir. Só quero um lugar seguro.

Ele deu um passo à frente, sua presença imponente e reconfortante ao mesmo tempo:

— Eu sei, Surya — ele murmurou, sua voz suave como uma carícia. — E é por isso que precisamos tomar a decisão certa. Eu prometo que não deixarei nada acontecer com você. Mas precisamos ser inteligentes.

Meu coração disparou, um calor inexplicável subindo pelo meu corpo. Por um momento, nossos olhares se prenderam, e algo passou entre nós, algo que eu não conseguia definir. Um sentimento sutil, mas inegável, que sempre esteve lá, mas que agora parecia mais forte, mais real.

Desviei o olhar, tentando acalmar a tempestade dentro de mim. Cada fibra do meu ser estava em guerra, uma parte de mim queria confiar nele completamente, a outra queria se libertar de tudo.

— Vamos seguir para o norte, então — cedi, minha voz quase um sussurro. — Mas saiba que ainda acredito que o sul é a melhor opção. E se estiver errado, Azriel, prometo que farei o que for necessário para nos manter seguros.

Ele assentiu, um sorriso suave tocando seus lábios.

— Obrigado, Surya. Vamos encontrar um caminho, juntos.

Enquanto nos preparávamos para seguir, a tensão entre nós era quase palpável. Cada olhar, cada gesto, carregava uma carga emocional que ambos tentávamos ignorar. Mas no fundo, eu sabia que algo havia mudado. Algo havia despertado, e agora, mais do que nunca, precisávamos um do outro para enfrentar o que quer que viesse pela frente.

A jornada ao norte seria difícil, mas com Azriel ao meu lado, sentia uma centelha de esperança. E talvez, apenas talvez, essa jornada nos levaria a mais do que apenas um refúgio seguro.

Corte de Luz e Sombras - Livro 1 - Fanfic ACOTAROnde histórias criam vida. Descubra agora