eu não ligo

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O ambiente estava mergulhado em um silêncio denso, apenas rompido pelo sussurro do vento que penetrava pelas frestas da janela semiaberta. O cabelo dourado do ser celestial repousava sobre o colo do homem, enquanto ele contemplava o teto com melancolia. Um dia fatigante havia se desenrolado para o anjo caído, que se via imerso em um mar de náusea, tristeza e abandono.

"Não pode, simplesmente, adentrar minha morada e arrogar-se o direito de usar-me como almofada, sem ao menos conceder-me uma explicação", retorquiu o moreno, enquanto afagava os macios cabelos do anjo.

"Desdenhar-me-á quando souber o motivo... Conheço-o bem, seu tolo", replicou o serafim com um tom de desalento.

O locutor, então, revirou os olhos, brincando com os fios loiros do ser celestial. Com o passar do tempo, o homem de cachos castanhos acabara por desenvolver um vínculo peculiar com o soberano infernal. Não era algo que pudesse explicar; simplesmente, já não se sentia tão desconfortável em sua presença como outrora.

Não era uma situação incomum. Durante oito anos, o locutor recebera visitas incessantes daquele serafim insuportável; era natural que uma certa intimidade se estabelecesse, especialmente quando compartilhavam o mesmo espaço.

"Apresse-se, não disponho de tempo para suas lamentações... Sua atitude infantil, desprovida de uma justificativa plausível, apenas amplia meu julgamento", advertiu o moreno, com uma ponta de impaciência em sua voz.

Lúcifer soltou um suspiro pesado, como se carregasse o peso do mundo em seus ombros.

"Minha esposa... Ela tem se mostrado tão distante ultimamente, evita que me aproxime de Charlie, repreende-me sempre que tento dialogar com ela... Está tão diferente. Será que cometi algum erro?", desabafou o serafim, revelando uma vulnerabilidade raramente vista.

O moreno ouvia as queixas de Lúcifer com um semblante exausto. Alastor nunca fora entusiasta dos comentários do anjo sobre Lilith. Sejam eles bons ou ruins, simplesmente não se interessava pelas palavras do loiro.

"Se este relacionamento lhe causa desconforto, o caminho do divórcio se apresenta como solução. Sugerir-me tal ponderação é quase um insulto à minha inteligência", respondeu o moreno, com um misto de desdém e resignação, refletindo sobre a complexidade dos laços que uniam aqueles seres tão díspares.

O loiro soltou um suspiro fatigado, como se o peso dos séculos se refletisse em cada respiração, antes de finalmente se expressar:

"Percebe, apenas, quão insensível és... Acompanhei aquela mulher por eras, amo-a mais do que a mim mesmo. Desejo compartilhar minha felicidade ao seu lado... e desejo que ela também seja feliz comigo."

O locutor retirou os óculos do rosto, limpando-os no tecido de sua camisa com um gesto calmo e metódico, antes de recolocá-los, seu olhar penetrante denotando uma ponderação profunda enquanto respondia:

"Parece-me que não encontras felicidade ao lado dela... Parece te causar mais malefícios do que benefícios. Existem outras pessoas com quem poderias encontrar felicidade... O divórcio não é o fim do mundo; como ser imortal, não podes passar a eternidade ao lado de alguém que, em vez de amor, te traz apenas dor."

O loiro afastou a mão do homem de seus cabelos, exibindo uma expressão irritada ao se sentar no sofá, o cenho franzido denunciando a tormenta interna que o consumia.

"E o que um canibal assassino e psicótico sabe sobre relacionamentos? Passas teus dias solitário, trabalhando sozinho, matando sozinho, cozinhando sozinho, indo a festas e permanecendo só! És um ser solitário, nunca experimentaste um romance sequer. Não aceitarei conselhos de alguém como tu", disparou Lúcifer, atingindo um ápice de estresse que reverberou pelo ambiente, como se as paredes da sala sentissem o peso de suas palavras.

Em resposta, Alastor avançou sobre o anjo, deitando-o no sofá e sobrepujando-o com uma presença dominadora que contrastava com a aura celestial do loiro.

"Não estou sozinho... Tenho a minha própria companhia", declarou o homem com um sorriso sardônico, prosseguindo com uma calma gélida: "Aproveito-me da minha própria presença... Claro, uma boa companhia de vez em quando é agradável... A sua é um exemplo disso. Entretanto, parece que só buscas minha presença quando enfrentas problemas em casa."

Lúcifer desviou o olhar do homem sobre ele; o loiro presumira que suas noites repletas de culinária regional, jogos de cartas, música e dança com o locutor para encobrir suas disputas conjugais passavam despercebidas, mas não escaparam à percepção do moreno, cujo olhar era como o de um observador atento, capturando cada detalhe do ambiente ao redor.

"Não seja tolo... Não tem nada a ver com minha esposa; quis apenas te conceder o luxo de minha presença", retrucou o ser celestial, enquanto o sorriso do moreno se alimentava das palavras do loiro, suas mãos deslizando pelas laterais do rosto do anjo, explorando cada linha e expressão com cuidado e intenção, como se quisesse decifrar os segredos mais profundos de sua alma atormentada.

"Senhor Morningstar, acaso pareço um tolo aos seus olhos? Na semana passada, o senhor adentrou meus aposentos enquanto eu descansava, mencionando que meu sono solitário clamava por companhia... Na outra ocasião, trouxe à baila comentários sobre minha alimentação precária, e ontem, compartilhamos uma partida de truco acompanhada de um vinho barato. E o mais intrigante de tudo isso? Sua sensibilidade constante... Seu olhar turva-se ao mencionar sua esposa, sempre tentando iniciar conversas sobre sentimentos e afins... Não que eu me importe, mas prefiro que resolva logo suas questões conjugais em vez de me usar como mero substituto", expressou Alastor, com uma mistura de exasperação e curiosidade, enquanto fixava seus olhos nos do ser celestial.

O sorriso do homem diminuiu, mas não se desvaneceu por completo. Alastor não conseguia evitar de observar minuciosamente cada detalhe do rosto do anjo: os olhos marejados, as rugas de preocupação, o olhar desesperado... até mesmo o biquinho que o ser celestial fazia.

"Peço desculpas se meu comportamento o magoou", disse Lúcifer com um tom de sinceridade genuína, suas palavras carregadas de remorso.

"Não me magoou, não me importo", retrucou Alastor, mantendo sua expressão impassível.

"Minha intenção... nunca foi usá-lo como mero substituto... Me perdoe, prometo sinceramente que não voltarei a agir assim contigo... Foi cruel da minha parte, mais cruel do que qualquer soberano dos Sete Anéis do Inferno...", confessou Lúcifer com um semblante arrependido, seus olhos sem vida refletindo apenas o brilho das lágrimas de remorso.

"Já disse, não me importo", disse o moreno, limpando as lágrimas do rosto do anjo com uma pontada de carinho, como se desejasse confortá-lo apesar de suas próprias reservas emocionais.

"Sabe... Você precisa agir em vez de se lamentar, querido", disse o radialista, passando seu polegar pelos lábios do anjo com uma delicadeza incomum em suas interações.

"Eu não consigo...", desabafou Lúcifer em um tom choroso, encarando os olhos do homem que estava sobre ele. "Ela é tudo para mim."

Alastor então aproximou seu rosto do do anjo, suas feições próximas o suficiente para sentir a respiração do outro. "Já você... não significa mais nada para ela... Ela dá todos os sinais de que não sente mais nada por você... Apenas aceite, siga sua vida com sua filha e procure alguém que realmente goste de você...", aconselhou, suas palavras carregadas de uma mistura de compaixão e pragmatismo.

O tempo parecia se arrastar enquanto os homens permaneciam naquela posição, imersos em suas próprias reflexões. Então, Lúcifer se levantou com uma mistura de pesar e resignação, suas asas desvanecendo-se lentamente enquanto ele se preparava para deixar aquele lugar de encontro.

"A conversa foi proveitosa... Mas eu... eu não posso mais ficar... Boa noite, Alastor", despediu-se, sua voz carregada de um pesar palpável, antes de desaparecer completamente, deixando Alastor sozinho com seus próprios pensamentos e reflexões sobre o ser celestial que acabara de partir.

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