CORALINE DESPERTOU com o sol do meio da manhã em cheio sobre seu rosto.
Por alguns momentos sentiu-se totalmente deslocada. Não sabia onde se encontrava, nem
estava totalmente certa de quem era. É surpreendente o quanto do que somos depende da cama
onde acordamos pela manhã, e é surpreendente o quanto isso é frágil.
Às vezes, Coraline esquecia-se de quem era enquanto explorava o Ártico, a floresta
amazônica, ou a África desconhecida em seus devaneios, e era somente quando lhe davam uns
tapinhas nas costas ou chamavam o seu nome que Coraline retornava de um milhão de milhas
com um susto e, em frações de segundos, tinha que se lembrar de quem era, de qual era o seu
nome e até mesmo que estava lá.
Agora o sol iluminava seu rosto e ela era Coraline Jones. Sim. E então, o verde-rosa do
quarto em que se encontrava, e o farfalhar de uma grande borboleta de papel pintado que
pairava e se chocava contra o teto lhe disseram onde ela havia acordado. Desceu da cama. Não podia usar pijamas, roupão e chinelos durante o dia, concluiu;
mesmo que isso significasse ter de usar as roupas da outra Coraline. (Será que havia uma
outra Coraline? Não, compreendeu. Não havia. Apenas ela.) Porém, não havia roupas normais
no armário. Eram fantasias ou (pensou) o tipo de roupa que adoraria ter pendurada em seu
armário em casa: um traje de bruxa esfarrapado, uma roupa remendada de espantalho, um
uniforme de guerreiro do futuro com pequenas luzes digitais que brilhavam e piscavam, e um
vestido de festa, colante, todo coberto de plumas e espelhos. Finalmente, em uma gaveta,
encontrou um par de jeans pretos, que pareciam ser feitos com o veludo da noite, e um suéter
cinzento da cor da fumaça espessa, com pequenas estrelinhas no tecido cintilante.
Vestiu os jeans e o suéter. Depois, calçou um par de botas laranja brilhante que achou na
parte baixa no armário.
Tirou a última maçã do bolso do roupão e em seguida, do mesmo bolso, tirou a pedra com
o furo no meio.
Colocou a pedra no bolso do jeans e sua cabeça pareceu clarear-se um pouco. Como se
tivesse saído de uma espécie de névoa.
Entrou na cozinha, mas estava deserta.
Tinha certeza, no entanto, de que havia alguém no apartamento. Percorreu o corredor até
chegar ao estúdio do pai e descobriu que estava ocupado. — Onde está a outra mãe? — Coraline perguntou ao outro pai. Ele estava sentado no
estúdio, em uma mesa que se parecia exatamente com a mesa do seu pai, mas não estava
fazendo absolutamente nada, sequer estava lendo os catálogos de jardinagem que seu pai lia
quando fingia que estava trabalhando.
— Lá fora — informou ele. — Consertando as portas. Há problema com pragas. — Ele
pareceu feliz de ter alguém com quem conversar.
— Quer dizer ratos?
— Não, os ratos são nossos amigos. É o outro tipo. O sujeito preto e grande, com a cauda
erguida.
— Você quer dizer o gato?
— Esse mesmo — disse o outro pai.
Hoje ele estava menos parecido com seu pai verdadeiro. Havia algo ligeiramente vago
em seu rosto — como massa de pão que começa a crescer e vai nivelando todas as saliências,
rachaduras e depressões. — Na verdade, não devo falar com você quando ela não estiver aqui — disse. — Mas
não se preocupe, ela não sairá com muita freqüência. Eu mostrarei a você nossa gentil
hospitalidade, de tal modo que você nunca sequer pense em voltar. — Fechou a boca e cruzou
as mãos sobre seu colo.
— Então, o que devo fazer agora? — perguntou Coraline. O outro pai apontou para os
lábios. Silêncio.
— Se você nem mesmo vai falar comigo — disse Coraline —, então vou explorar.
— É perda de tempo — disse o outro pai. — Não existe nenhum outro lugar a não ser
aqui. Foi tudo o que ela fez: a casa, o terreno e as pessoas da casa. Ela fez e esperou. — Então
ele pareceu constrangido e pôs o dedo em frente à boca novamente, como se tivesse acabado
de falar demais.
Coraline saiu do seu estúdio. Foi para a sala de visitas, até a velha porta e empurrou,
sacudiu e bateu nela. Não, estava bem trancada e a outra mãe tinha a chave.
Olhou ao redor da sala. Parecia-lhe tão familiar — era isso o que a tornava tão estranha.
Tudo era exatamente como ela se lembrava: havia todo o mobiliário de sua avó, com cheiro
estranho, havia a pintura da bandeja de frutas (um cacho de uvas, duas ameixas, um pêssego e
uma maçã) pendurada na parede, havia a mesa de madeira baixa com os pés de leão e a lareira
vazia que parecia sugar o calor da sala.
Mas, havia algo mais, algo que ela não se lembrava de ter visto antes. Uma bola de vidro sobre o console da lareira.
Foi até a lareira, ficou na ponta dos pés, ergueu a bola e a abaixou. Era um globo de neve
com duas pessoas pequenas dentro dele. Coraline balançou-o e a neve pôs-se a flutuar, uma
neve branca que brilhava ao escorregar pela água.
Então, recolocou o globo de neve sobre o console e continuou a procurar por seus
verdadeiros pais e por uma saída.
Saiu do apartamento. Passou em frente à porta com as luzes piscando, atrás da qual as
outras senhoritas Spink e Forcible apresentavam eternamente seu show, e dirigiu-se para o
bosque.
De onde Coraline vinha, quando se ultrapassava o grupo de árvores, avistavam-se apenas
a campina e a velha quadra de tênis. Nesse lugar, o bosque ia até mais longe e as árvores
ficavam cada vez mais brutas e menos parecidas com árvores à medida que se avançava.
Logo, logo elas pareciam apenas vagas impressões do que seria uma árvore: ura tronco
marrom-acinzentado embaixo, uma mancha esverdeada do que poderiam ser folhas na parte de
cima.
Coraline ficou a imaginar se a outra mãe não se interessava por árvores ou se apenas não
tinha se incomodado com aquele pedaço em especial, porque não esperava que ninguém fosse
tão longe. Continuou andando.
E então começou a névoa.
Não era úmida como a névoa comum ou a neblina. Não era fria nem era quente. Parecia a
Coraline que estava caminhando para dentro de nada.
Sou uma exploradora, pensou Coraline. E preciso de todos os caminhos para fora daqui
que puder encontrar. Portanto, continuarei a andar.
O mundo que ela estava percorrendo era um nada descolorido, como uma folha de papel
em branco ou um enorme quarto branco vazio. Não tinha nenhuma temperatura, nenhum cheiro,
nenhuma textura e nenhum sabor.
Certamente não é névoa, concluiu Coraline, embora não soubesse do que se tratava. Por
alguns instantes, imaginou que tinha ficado cega. Mas não, conseguia enxergar a si mesma
claramente como o dia. Não havia chão sob seus pés, apenas uma brancura nevoenta e leitosa.
— O que pensa que está fazendo? — perguntou uma forma ao seu lado. Demorou alguns instantes para que seus olhos focalizassem a forma corretamente: achou,
de início, que se tratava de algum tipo de leão a alguma distância dela, depois, pensou tratarse de um rato bem ao seu lado. E então, descobriu.
— Estou explorando — disse Coraline ao gato.
Seu pêlo estava eriçado, seus olhos, abertos e sua cauda, baixa entre as pernas. Não
parecia um gato feliz.
— Lugar ruim — disse o gato. — Se quiser chamar isso de lugar, o que eu não chamo. O
que está fazendo aqui?
— Estou explorando.
— Não há nada para descobrir aqui — disse o gato. — Aqui é simplesmente o exterior, a
parte do lugar que ela não se deu o trabalho de criar.
— Ela? — Aquela que diz ser sua outra mãe — disse o gato.
— O que ela é? — perguntou Coraline.
O gato não respondeu, apenas andava pela neblina pálida ao lado de Coraline.
Uma forma começou a delinear-se em frente deles, grande, elevada e escura.
— Você estava errado! — disse ao gato. — Tem alguma coisa aí! E, então, a forma
ganhou contorno em meio à névoa: uma casa escura que surgia da brancura informe diante
deles.
— Mas essa é... — disse Coraline.
— A casa da qual acabou de sair — concordou o gato. — Precisamente.
— Talvez eu tenha me virado sem perceber nessa neblina — disse Coraline. O gato enrolou a ponta do rabo, formando um ponto de interrogação e virou a cabeça para
o lado.
— Você pode ter feito isso — disse. — Eu, certamente não. Errado mesmo.
— Mas como é possível afastar-se de alguma coisa e ainda assim retornar a ela?
— Fácil — disse o gato. — Pense em alguém dando a volta ao mundo. Você começa
afastando-se de alguma coisa e termina voltando para ela.
— Mundo pequeno — disse Coraline.
— É grande o bastante para ela — disse o gato. — Teias de aranha só precisam ser
grandes o bastante para apanhar moscas.
Coraline arrepiou-se.
— Ele disse que ela estava consertando todos os portões e portas — disse Coraline ao
gato — para manter você de fora. — Ela pode tentar — respondeu o gato, não parecendo se impressionar. — Ah, sim. Ela
pode tentar. — Estavam agora em pé sob um grupo de árvores, ao lado da casa. Essas árvores
pareciam muito mais plausíveis. — Há entradas e saídas de lugares como este que nem mesmo
ela conhece.
— Então foi ela quem fez esse lugar? — perguntou Coraline.
— Fez, achou... qual a diferença? — disse o gato. — Em ambos os casos, ela o tem há
muito tempo. Espere... — E o gato arrepiou-se e saltou e, antes que Coraline pudesse piscar,
estava sentado com uma pata em cima de um rato grande e preto. — Não aprecio ratos nem
com os melhores recheios — disse o gato num tom amigável, como se nada tivesse acontecido
— mas, nesse lugar, os ratos são todos espiões dela. Usa-os como seus olhos e suas mãos... —
E com isso, deixou o rato partir.
O rato correu alguns metros e então, com um pulo, o gato estava sobre ele, golpeando-o
severamente com a pata de garras finas, enquanto o prendia com outra pata.
— Adoro essa parte — exclamou o gato alegremente. — Quer me ver fazer de novo?
— Não — respondeu Coraline. — Por que faz isso? Você o está torturando.
— Mmm — disse o gato. Deixou o rato sair. O rato deu alguns passos cambaleantes e confusos e então começou a correr. Com um
golpe de sua pata, o gato arremessou-o no ar, pegando-o com a boca.
— Pare! — gritou Coraline.
O gato deixou o rato cair entre suas duas patas dianteiras.
— Alguns — disse o gato suspirando, em um tom de voz tão macio como seda embebida
em óleo — sugerem que a tendência dos gatos a brincar com suas presas é misericordiosa —
afinal, permite ao estranho lanchinho corredor escapar de vez em quando. Quantas vezes
acontece de seu jantar escapar?
E então, pegou o rato com sua boca e levou-o para a floresta, atrás de uma árvore.
Coraline caminhou de volta para a casa.
Tudo estava silencioso, vazio e deserto. Até mesmo suas pisadas sobre o chão atapetado
soavam alto. Partículas de poeira penduravam-se de um raio de sol. No final do corredor, ficava o espelho. Ela podia ver-se indo na direção dele, e, no
reflexo, parecia um pouco mais corajosa do que se sentia na realidade. Não havia mais nada
refletido no espelho. Apenas ela, no corredor.
Uma mão tocou-lhe o ombro e ela olhou para cima. A outra mãe olhava-a atentamente com
grandes olhos de botões negros.
— Coraline, minha querida — disse ela. — Pensei que poderíamos jogar alguns jogos
esta manhã, agora que você voltou da caminhada. Amarelinha? Baralho? Monopólio?
— Você não apareceu no espelho — disse Coraline. A outra mãe sorriu.
— Espelhos — disse ela —, não se deve confiar nos espelhos. E então, que jogo vamos
jogar?
Coraline abanou a cabeça.
— Não quero jogar com você — disse. — Quero ir para casa e ficar com meus pais de
verdade. Quero que você deixe eles irem embora. Quero que você nos deixe todos irmos
embora. A outra mãe abanou a cabeça lentamente:
— Mais afiado que o dente de uma serpente — disse ela — é a ingratidão de uma filha.
Mas até o espírito mais orgulhoso pode ser vencido com o amor. — E seus longos dedos
brancos moviam-se de um lado para outro e acariciavam o ar.
— Não tenho planos de amar você — disse Coraline. — Haja o que houver, não pode me
obrigar a amar você.
— Vamos conversar — disse a outra mãe, virando-se e caminhando até o sofá. Coraline
seguiu-a.
A outra mãe sentou-se no grande sofá. Pegou uma sacola de compras que se encontrava ao
lado e puxou um saco de papel branco barulhento de dentro dela.
Estendeu a mão até Coraline.
— Aceita um? — perguntou educadamente.
Coraline olhou para baixo esperando que fossem bombons ou caramelos. O saco estava preenchido até a metade de grandes besouros reluzentes, subindo um por cima do outro no
esforço de sair do saco.
— Não — disse Coraline. — Não quero.
— Você que sabe — disse a outra mãe. Pegou cuidadosamente um besouro especialmente
grande, arrancou-lhe as patas (que deixou cair habilmente dentro de um cinzeiro grande de
vidro sobre a mesinha ao lado do sofá) e estourou o besouro na boca. Mastigou-o alegremente.
— Hmm — exclamou, e pegou outro.
— Você é nojenta — disse Coraline. — Nojenta, estranha e má.
— Isso lá são modos de falar com sua mãe? — perguntou a outra mãe, com a boca cheia
de besouro.
— Você não é minha mãe — disse Coraline. Sua outra mãe ignorou a resposta.
— Bem, acho que você está um pouco agitada demais, Coraline. A tarde, poderíamos
bordar um pouco talvez ou fazer algumas pinturas com aquarela; depois, nós jantaremos; e, se
você tiver se comportado bem, poderá brincar ura pouco com os ratos antes de dormir. Eu vou ler uma história, vou cobrir você e dar-lhe um beijo de boa noite. — Seus longos dedos
brancos flutuavam gentilmente como uma borboleta cansada e Coraline sentiu um calafrio.
— Não — disse Coraline.
A outra mãe sentou-se no sofá. Sua boca era uma linha, os lábios comprimidos. Estourou
mais um besouro na boca, e depois outro, como alguém que tem um saco de uvas passas
cobertas de chocolate. Seus grandes olhos de botões negros fitaram os olhos cor de avelã de
Coraline. Seus cabelos negros lustrosos enrolavam-se e emaranhavam-se pelo pescoço e no
colo como se um vento, que Coraline não conseguia nem tocar nem sentir, soprasse sobre eles.
As duas olharam-se fixamente por mais de um minuto. Então, a outra mãe disse:
— Modos! — Dobrou o saco de papel branco cuidadosamente para que nenhum besouro
escapasse e recolocou-o na sacola de compras. Depois, foi se levantando, levantando,
levantando, ficando cada vez mais alta. Parecia mais alta do que Coraline se lembrava. Enfiou
a mão no bolso do avental e tirou, primeiro, a chave da porta escura, o que a fez franzir a
testa, jogando a chave dentro da sacola de compras; e, depois, uma chave bem pequena
prateada. Segurou-a no alto triunfalmente. — Aqui está — disse. — Isso é para você,
Coraline. Para o seu próprio bem. Porque amo você. Para ensinar-lhe boas maneiras. Bons
modos fazem o homem, afinal.
Empurrou Coraline para o corredor, avançando na direção do espelho que ficava no final.
Em seguida, enfiou a pequena chave no tecido do espelho e girou-a. O espelho abriu-se como uma porta, revelando um espaço escuro atrás dele.
— Você poderá sair quando aprender a ter modos — disse a outra mãe. — E quando
estiver pronta para ser uma filha amorosa.
Segurou Coraline e empurrou-a para dentro do espaço escuro atrás do espelho. Tinha um
pedaço de besouro grudado no lábio inferior. Seus olhos de botões negros não tinham
expressão alguma.
Então, fechou a porta do espelho e deixou Coraline no escuro.
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Coraline - Neil Gaiman ( Tradução PT- BR)
ContoUma menina chamada Coraline, que acaba de se mudar com seus pais para uma casa antiga. E o maior desafio dela parece ser sobreviver à mesmice com a sua família - seus pais não dão atenção para ela * Esse é um conto original de Neil Gaiman, não é me...