Capítulo Único

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Existe um lugar, chamado de Casa das Memórias. Todas as respostas, e todas as perguntas estão lá. A casa é sombria e silenciosa, mesmo durante um dia claro e convidativo não se ouve ou vê muito vindo dela, hoje não é uma exceção. Existe som dentro da casa, sempre houve.

Por mais estranho que pareça aos que estão fora dela, mas vivem pessoas aqui, ou melhor viveram, hoje apenas um "fantasma", uma lembrança, sobrevive dentro dessas paredes, ainda fazendo sons ocasionalmente.

Os sons estão presentes, eles são parte da memória tanto quanto a visão, o paladar ou o toque, é claro, mas a chuva batendo no telhado agora é a única coisa que faz mais barulho do que as passadas que constituem a parte mais alta dos sons que a casa vê. O arrastar de papéis, o ranger da madeira, até o respirar, todos são presentes e criados dentro da casa, mas eles estão todos abafados, quase consumidos pela tempestade que cai fora da casa.

É uma tempestade bem forte, por isso os sons dentro de casa também são mais altos que o normal, mesmo que ninguém fora dela saiba disso.

A casa é bastante simples, dois andares, sala, cozinha, área de refeições, dois quartos, dois banheiros e um escritório, todos em silêncio completo e absoluto, exceto pelo escritório. A luz amarelada que cai sobre a mesa de escritório e seus arredores dá um ar de calor e conforto à sala, mas ela não é reconfortante, na verdade estar dentro dela causa a sensação de desconforto e claustrofobia, mesmo não sendo realmente claustrofóbico.

A sala é simples, não tem decorações nas paredes ou mesmo uma estante com objetos reconfortantes e que expressam personalidade de qualquer forma, o máximo de individualidade presente na sala são os painéis de madeira nas paredes e a mesa, mas eles são praticamente irrelevantes para a sala.

Existem centenas, talvez milhares de folhas de papel aqui, sejam elas escritas, riscadas, amassadas ou rasgadas, estão jogadas em todos os lugares, a sala está tomada por papéis. Não dá mais para ver a janela por causa deles, em alguns pontos nem mesmo o chão é visível.

Do outro lado da sala existe uma outra mesa, essa está organizada. Não existem traços de uso, de poeira, ou de um dono, exceto pela pequena pilha de papéis e fotos num dos cantos dela, a cadeira atrás também está completamente vazia e limpa, contrastando com a sala.

A luz se apaga, o quarto é tomado pela escuridão da noite chuvosa, estar dentro da sala agora é ainda menos reconfortante, mas é algo que precisa ser feito. Falta pouco, mais algumas cartas apenas, antes de tudo estar terminado, parar agora não é uma opção, na verdade, parar nunca foi uma opção.

Novos papéis, alguns riscados, a maioria em branco são depositados na mesa já cheia, a madeira range com o peso excessivo sobre ela, alguns poucos são retirados da mesa e colocados em outros pontos da sala, aumentando as pilhas, duas folhas e uma foto são levadas para a mesa sem dono e colocadas por sobre as outras com cuidado.

A cadeira se move, os papéis são ajustados, as canetas tinteiro são reabastecidas. O som de riscos, de ideias fluindo, de escrita, de memórias, se torna presente na sala, alternando ocasionalmente com o de mover papéis e o de abastecer cada uma das canetas, usadas ora com delicadeza, ora com revolta, criando uma escrita incoerente consigo mesma e muitos erros nas folhas.

Escrever no escuro não é agradável de muitas maneiras, mas a escrita flui, e parar agora seria desperdício, fazem o que, quatro horas? De qualquer forma é pouco tempo. Por mais que seja necessária uma reescrita posterior as palavras fluem, então é melhor despejar o fluxo no recipiente adequado e depois separar chumbo de ouro.

Um raio ilumina a sala momentaneamente, o som ensurdecedor vem logo em seguida. Um risco errático cruza uma das folhas sobre a mesa, foi culpa do susto, a folha vira uma bola e se junta às outras no chão, a lixeira cheia a mais de uma hora.

A lâmpada reacende, mas isso não muda o foco dos papéis, lentamente a chuva passa, a tempestade se foi, tudo some, exceto pelo som de folhas de papel e caneta se encontrando. O relógio bate a hora, mas não dá para ver qual por causa dos papéis em frente a ele, não dá nem para saber se é noite ou dia por causa da lâmpada acesa e as pilhas de papel bloqueando a janela, mas um bom tempo se passou.

O respirar se torna lento e uniforme, a sonolência se fazendo presente pouco a pouco, mas adormecer ainda não é necessário, escrever é. A fome pode surgir em algum momento, mas ela pode ser ignorada sem problemas, é só quando ambas as mãos ficam dormentes e a dor da fome muito forte que o som para, o corpo prestes a ceder completamente.

Ficar na sala não é mais uma opção, comer e dormir são necessários, não dá mais para ignorar a dor também, mãos que quase não se movem e costas rígidas demais, os olhos lacrimejam só de levantar e sair da cadeira, as pernas bambeiam e tremem a cada passo. A sala vazia fica para trás, apenas ela, os papéis intermináveis, as flores envoltas em resina e as canetas tinteiro.

Talvez até haja mais coisas além disso nesta sala, mas se existe os papéis cobriram então é como se não existisse, e quem poderia se lembrar também está enterrado nesses papéis o suficiente para quase esquecer que não é os papéis, as canetas e a escrita, que ainda é uma pessoa.

A folha onde estão depositadas as canetas tinteiro mancha com a tinta que escorre das pontas e vaza para as folhas de baixo, elas também terão de ser reescritas, mais tarde, mas tudo bem, isso era esperado, as ideias ainda fluiam quando o corpo desistiu, então o trabalho parou no meio, era óbvio que elas ainda vazaram de uma forma ou de outra.

O som da tempestade ainda é forte, mas está mais longe, longe o suficiente para ser ouvido o som de choro abafado vindo de fora da sala. Os sons cessaram no escritório eventualmente, sendo substituídos por outros lugares da casa. As memórias continuam vazando, continuam indo, continuam vindo.

Ainda tão silenciosa e sombria como de costume, e mais cheia de papéis do que antes, assim está a casa. Os papéis não estão apenas no escritório, estão por toda a parte, em cima de armários, embaixo das camas, dentro das panelas, a escrita está completamente espalhada por toda a parte, não há um lugar que ela não tenha tocado ainda, e nos piores momentos até as paredes são riscadas e gravadas com palavras, talvez uma boa noite de sono e uma refeição completa sejam permitidos ao corpo quase desfalecido, mas as chances não são garantias, e uma caneta reserva espia de dentro do bolso traseiro da calça quase como se esperasse ficar sem tinta durante as próximas horas.

A casa das Memórias é um lugar, um lugar onde todas as respostas e todas as perguntas estão. E onde sempre vão estar. As memórias são importantes, lembrar é importante. Sem lembrança não há vida e sem vida não há lembrança.

A caneta pode ficar sem tinta, o papel pode acabar, o tempo pode não fazer sentido, mas as memórias estão lá, lembrando e sendo lembradas. Sem lembrança não há vida, e sem vida não há lembrança.

Os riscos voltam, as memórias voltam, a escrita volta, o corpo não parou, não comeu, não dormiu, mas ele volta. Sem lembrança não há vida e sem vida não há lembrança.

O papel está sujo, a caneta está seca, a sala está escura, mas a escrita continua. O corpo tem fome, tem sede, tem sono, mas os riscos continuam. A tempestade passa, o tempo vira, o relógio soa, mas os sons continuam. A comida acabou, os lençóis estão sujos, a água secou, mas a memória continua. Tudo se foi, o tempo não passa, o papel não existe, o corpo parou, mas a lembrança? A lembrança continua.

Porque sem lembrança não há vida, e sem vida não há lembrança.

A casa das memóriasOnde histórias criam vida. Descubra agora