II - chamas

1 0 0
                                    

Acordo com duas batidas leves na porta, mas só abro os olhos depois do murro. Tenho quase certeza de que Sofia abriu um buraco na madeira com o punho, embora isso não seja exatamente possível para uma menina de doze anos.

Ela entra batendo os pés como se aquele fosse o pior dia da sua vida, o que provavelmente era, e me olha de cara feia.

- Levanta - ordena, mesmo vendo que já estou de pé. - Tem café.

Ficamos em silêncio. Espero que ela diga algo um pouco mais animador, o que não acontece; Sofia nunca foi do tipo alegre. Não que eu não possa dizer o mesmo sobre mim.

Ela pondera por alguns segundos.

- Não demora. - é tudo que diz antes de se virar e sumir pelo corredor. Ouço seus pulinhos nas escadas, e um barulho que se assemelha ao som de mamãe reclamando sobre algo banal. É uma manhã tão comum quanto todas as outras, concluo.

Exceto pelo fato de que despertei com uma certeza maior que qualquer outra que já tivera; a de que aquele dia deveria ser importante de alguma forma.

*

O silêncio na mesa da cozinha só é interrompido pelos ruídos que Sofia faz enquanto toma suco de canudinho. Mamãe olha feio para ela, mas não adianta muito, porque nós dois já sabemos que Sofia não liga. Minha irmã é especialista em tirar qualquer um do sério por pura diversão.

Mas quem poderia culpá-la, afinal? Estaria esquecida, encostada nas paredes, se não fosse pela sua capacidade de ser vista e ouvida onde quer que esteja, por bem ou por mal.

Talvez seja por causa de seus cabelos loiros, que se empalidecem e se mesclam com longas mechas azuis nas pontas. Um tipo azul celeste, que parece não desbotar nunca, que combina com seus olhos. Sofia soube na hora que cor queria e, mesmo com os protestos de nossa mãe, deu um jeito de pintar o cabelo no banheiro de casa no verão anterior. Ficou tão ruim que tivemos que ir ao salão consertar, então no final ela conseguiu o que queria.

- Você teve pesadelos, Soul? - Sofia solta, sem desviar os olhos do copo. Sinto minha mãe me encarando ao meu lado, analisando minha resposta.

- Como assim? - pergunto, simplesmente.

Ela ergue o olhar para mim. Não sei dizer se está debochando da minha cara ou não, mas pelo menos sua voz parece gentil.

- Te ouvi resmungando a noite toda. Você acordou de madrugada, e parecia muito confuso quando bateu na minha porta.

- Você não tem tido episódios desde o ano passado - observa minha mãe. - O que houve?

Você houve, quero dizer. A briga. Mas esse tipo de evento é frequente em casa, então não faz sentido. É claro, "episódios"; é a palavra que minha mãe usa para descrever os momentos em que não penso tanto a respeito do que acontece à minha volta. Em outras palavras, de acordo com Sofia, é quando minha mente tem um blackout mas eu continuo acordado.

Nos últimos tempos, a única coisa anormal que tem ocorrido é o sonambulismo. Mas eu sei que, se mamãe soubesse das coisas de dentro, ela definiria minha existência inteira como um episódio muito, muito longo.

- Não me lembro disso - respondo. Solto a colher de cereal na vasilha quase cheia. Perco a fome tão rápido quanto a vontade de estar ali. Não gosto desse assunto.

- Com o que sonhou? - Sofia está fazendo de propósito, eu sei. Ela sabe que não quero responder, mas talvez perguntar seja seu trabalho como irmã mais nova.

É hora de sair dali.

Murmuro poucas palavras evasivas e me levanto. Sofia e Carrie não me impedem, e acho que é porque já estão acostumadas; não é a primeira vez que fujo de conversas. Na verdade, elas ficariam surpresas se eu respondesse, isso sim.

Cato minha mochila e calço os tênis, sem me importar em amarrar os cadarços. Logo já estou empurrando a bicicleta pela rua, o ar frio do início do outono ameaçando deixar minhas bochechas rosadas. Me agarro à sensação que o bairro traz; saudade. Nada mudou desde os meus onze ou doze anos.

Nada, com exceção daquele foi embora. Meu pai.

Não gosto de lembrar de como era viver ali antes de minha família se reduzir a três. É melhor imaginar que sempre foi assim, já que isso torna bem mais fácil ignorar as pegadas que meus pés deixaram para sempre marcadas com tinta vermelha na calçada da frente. Isso torna bem mais fácil não pensar na cerca trincada da casa da Sra. Maples, que nunca foi consertada desde o dia em que eu bati nela de bicicleta. Torna bem mais fácil de esquecer que, um dia, eu não fui Plutão; que, em algum verão distante, eu era o Sol.

Começo a pensar em átomos enquanto acelero o passo. Na oitava série, ou talvez na nona, aprendemos que tudo que existe é formado por matéria, e que toda essa matéria é contituída por átomos, que, por sua vez, têm elétrons e prótons. Nada disso importa, na verdade, mas é o que me vem à cabeça antes de eu me lembrar da parte mais curiosa: ao que parece, tudo no Universo é infinito.

Não é uma afirmação elementar. Mas, se os átomos se transformam e nunca são perdidos, então aquele verão ainda está aqui. Os átomos do oxigênio que arfávamos estão rodopiando em algum lugar, como algo novo que eu nunca vi. Talvez uma folha ou um cachorro. Talvez parte da lente nova dos óculos da Sra. Maples. Sei lá.

Agora estou correndo. Não, não quero me lembrar. Quero ser pequeno de novo. Pequeno como um átomo. Como Plutão.

Meus pulmões queimam mesmo com o frio - o outono me enche de folhas. Ouço um carro buzinando quando atravesso a rua, e subo na bicicleta pouco antes de descer a ladeira que separa o meu bairro da avenida. Ergo-me o máximo que posso, quase em pé nos pedais; o vento está mais forte agora, e seus assovios soam como gritos. Em algum ponto da descida, sinto o sol quente na pele, mas não quente o suficiente para superar o gélido ar que parece cortar meu rosto. Pássaros cinzas e brancos levantam voo quando as rodas lhes ameaçam, em conjunto com as folhas alaranjadas e vermelhas que serpenteiam ao meu redor, como se o mundo estivesse em chamas.

A descida chega ao seu fim e todos os encantos do mundo se apagam. Tudo que sobra é uma única faísca do fogo já extinto, queimando o pavil de uma vela derretida. Volto a arrastar a bicicleta empenada, pensando em como conseguirei fazer a chama brilhar novamente. No espaço não pega fogo.

Quando vejo a escola, a imagem da Sala Amarela surge dentro dos meus olhos, mas, dessa vez, não posso abri-los. Não posso abri-los porque já estão abertos, acordar porque já estou acordado. A descida foi bastante real para mim. Mas agora tudo que vejo é falso.

Quem é Plutão parado na frente de uma porta? Um monte de pares de olhos me encara do outro lado. Vejo alguém mais parado no meu lugar. Talvez seja meu próprio reflexo.

A descida foi real e o vidro também. Os átomos são reais e o vidro também. Minha meia-volta e o rangido da bicicleta são reais, e o vidro também é. Naquele momento, sou real como o vidro e as folhas. E a verdade da noite anterior me atinge como a chama.

Posso jurar que a bicicleta nem range tanto assim nas próximas ladeiras. Sei o que vou fazer em seguida, e finalmente consigo respirar. Repito que no Universo não pega fogo.

Mas na Terra, pega sim. Na Terra, a chama queima até não sobrar nada.

Notas do capítulo☆
"kaly" vem de "kalopsia"
nada fez sentido porque estou com muito sono
vem aí alguma coisa melhor que isso
- sua amiga kaly

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 06 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Orbitando PlutãoOnde histórias criam vida. Descubra agora