Perspectiva

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Os árduos dedos corriam pelo papel conforme a perspectiva clarificava-se em sua mente. A sua frente, os corpos estavam entrelaçados; pele com pele, tons contrastantes, belos sobrepostos sob dezenas de olhares - entre eles, o seu olhar azul tão focado que poderia se dizer um participante entre ambos, captando-os como um espelho a mero dispor de suas belezas. Estavam nus ali, apenas separados pelo tecido branco, frente a frente, bebendo-se para que todos pudessem observá-los e dissecá-los em diversos ângulos.

O estudante de artes plásticas - ainda em seu segundo semestre - desenhava o flanco direito, onde se podia ver o rosto da moça jazendo sobre o ombro de Antonio, que, por sua vez, descansava sobre o dela. Daniel via os cabelos castanhos da nuca pálida do modelo brilhando sobre os fios escuros de sua companheira. Estavam misturados. A tez de Mira estava suave como num descanso tranquilo - diferente do namorado, já havia feito aquilo diversas vezes. Não haviam pedido para descansar nem uma vez, e olha que àquela altura a tarde já ia alta.

Daniel se atentava aos detalhes das curvas e das formas. Eles eram belos e arrebatavam-no como se não tivesse escolha, como se nunca tivesse pertencido a lugar algum. Na verdade, não podia sequer acreditar que estava ali, pois desde que conhecera aqueles dois veteranos que tinham aparecido em sua sala para anunciar o trote no semestre anterior, havia desenvolvido esse interesse fora do comum por eles.

Antes daquela tarde, sempre os via pelos corredores, nas reuniões do sindicato estudantil e nos eventos acadêmicos - eram participantes assíduos. Numa determinada noite, na festa pós período de provas que o sindicato costumava organizar, trocou algumas palavras com Antonio. Ele era alto, risonho e dono dos olhos verdes mais oblíquos que já havia visto. Chegou pedindo um cigarro e quando descobriu que Daniel não tinha isqueiro, trocou uma coisa pela outra "Pronto, todos saem ganhando", havia dito com sua voz apaziguadora e um sotaque italiano tão forte que as palavras se perdiam no timbre de sua voz.

Antonio sabia quem era Daniel; filho do Professor Ardant da universidade de Londres e da Doutora Haddock, pesquisadora na mesma instituição e autora de vários livros sobre cultura antropocêntrica. Não era por aquilo que o mais jovem gostaria de ter sido reconhecido, mas já valia alguma coisa, ao menos a conversa rendeu um pouco mais, já que Tony - apelido dado pelos colegas ingleses - era curioso como Daniel e sabia se comunicar muito bem. Ao final da conversa, o italiano havia tocado em seu ombro e lhe dirigido um sorriso quente, com um olhar que o desmontou por breves segundos antes de retornar à realidade, a fim de ouvir aquele som que o faria estremecer até os ossos; o timbre da voz de Antonio quando dizia "Spero di encontrarti di nuovo".

"Espero te encontrar de novo."

A frase ecoou em sua mente por algum tempo como o lembrete de uma verdade irrefutável: estava encantado por Antonio. Desejava encontrar-se com ele novamente nem que fosse apenas para ouvi-lo falar irônico e divertido a respeito dos livros antropocêntricos de sua mãe, a doutora Haddock, que haviam ofendido toda a família Católica Apostólica Romana que possuía, e como era uma coincidência interessante agora conhecer o filho da grande responsável por tamanha heresia. Infelizmente, isso não aconteceu, até porque entraram numa fase de trabalhos e mais trabalhos, e Daniel imaginava que qualquer tempo livre que o rapaz tivesse seria destinado para coisas mais interessantes, como ficar com sua namorada, por exemplo.

Entretanto, ao que parecia, eles nem sempre estavam juntos, pois numa manhã de sábado, na biblioteca da University of the Arts London, ele encontrou Mira. Estava sentada na fileira mais afastada debruçando-se sobre um esboço na mesa, a moça ouvia algo nos fones de ouvido amarelos, atenta a cada detalhe de sua arte. Daniel havia achado aquilo interessante - diferente dos outros alunos que pintavam do lado de fora em busca de inspiração ao ar livre ou então nos confortáveis estúdios da universidade, ela desenhava reclusa na parte mais escondida de uma biblioteca, assim como ele.

Pincéis e AmoresOnde histórias criam vida. Descubra agora