Profundidade

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Um fato de conhecimento universal é que ao lado de uma faculdade sempre haveria um pub, então chegar a um lugar reservado, agradável e com uma boa cerveja não foi difícil. Logo os três ocupavam uma mesa perto da vitrine onde viam o movimento das ruas, mas mantendo-se longe do restante do bar. Brindaram três cervejas e comemoraram quando viram que era permitido fumar no local. Daniel acendeu o seu e viu Antonio acender o que dividiria com Mira.

Tragos profundos e olhares cúmplices até para o loiro forasteiro que despertava a curiosidade dos dois, mesmo que não tivesse conhecimento daquilo. Daniel bebia a cerveja a longos goles, alternando o olhar entre os olhos verdes e os castanhos; a pele branca tatuada e a pele marrom acetinada. Seu coração palpitava um pouco, mas ele era perito em mostrar apenas o necessário, além disso, já se sentia mais confortável na presença dos dois.

- Você não pega a matéria de modelagem e escultura, não é? Eu estou cursando ela em seu semestre, mas nunca te vejo nas aulas.

Antonio perguntou depois de dar um gole na cerveja. Havia tirado a camisa de flanela que usava por cima da camiseta branca, mostrando a pele ainda mais tatuada e o corpo jovial e forte. Daniel negou, tragando devagar. Então ele notava a sua ausência?

- Não... - respondeu - eu tenho evitado essa matéria, não sou nada bom com escultura, olaria, gesso, argila ou qualquer material desse tipo.

Mira também fumava e estava atenta à conversa. Ao ouvir aquilo, mexeu nos cabelos num gesto sutil, era uma mania sua.

- Tony também nunca gostou dessa matéria e enrolou pra pegar que nem você, e agora, já no meio do curso, tem que cursar ela no segundo semestre. Por isso eu prefiro enfrentar logo.

- Você fala isso porque é ótima em modelagem, mia bellezza - Antônio salientou entre risos.

- Existem matérias que eu não gosto, mas pego mesmo assim! - ela se defendeu, passando o cigarro para o namorado - Veja, eu detestava decoração ambiental, do quarto período, mas ainda assim cursei... Ficar com a grade toda bagunçada é muito incômodo.

- Ela é perfeccionista, Danny, não se assuste - o italiano sussurrou como se aquilo fosse um segredo.

Daniel se pegava sorrindo, encantado com a dinâmica dos dois à sua frente. Eles estavam sempre se tocando mesmo quando provocavam um ao outro com pequenas pirraças, era como se se comunicassem afetivamente com as mãos.

- Está tudo bem - respondeu - só que eu já testei antes e o resultado nunca me agrada, acho que me falta feeling.

- Feeling se cria com o tempo, Dan - a moça respondeu e tocou-lhe o braço com as mãos quentes e macias, apertando-o delicadamente - É tudo uma questão de textura e toque, a argila se molda ao seu toque, tudo está aqui...

Segurou-lhe a mão, acariciando-a por um instante.

- E suas mãos parecem boas para isso, inclusive - acrescentou - Se você for bruto, a argila se machuca e escapa entre seus dedos, mas se você for suave e respeitar a delicadeza do processo, a arte vai nascer nas suas mãos.

Os olhos de Daniel estavam naquela cena, naquele toque, completamente envolto na voz macia que lhe instruiu com tanto esmero. Entendeu cada palavra que ela proferiu e jurou para si mesmo que tentaria esculpir novamente. Olhou, então, para Antonio e o viu observá-los tranquilamente, terminando de fumar o cigarro antes de dar o último gole na cerveja.

- Tentei ensinar isso para Tony, mas ele não me escutou muito - Mira completou, por fim.

- Bem, o que posso dizer? Eu amo esse curso, é muito bom aprender coisas novas, mas eu já entrei com um único objetivo: tatuagem e restauração - disse o italiano.

A conversa correu até que o crepúsculo começasse a surgir no horizonte em um anúncio silencioso de que já haviam adentrado a noite. Os três jovens tinham bebido cervejas o suficiente para rirem dos assuntos mais bobos possíveis, às vezes até de quando se tratava de algo sério, como quando sofreram algum tipo de preconceito; eles pela bissexualidade e ela por ser mulher.

- A liberdade aqui é gritante, isso é um fato, é menos violento, é verdade, mas alguns preconceitos permanecem os mesmos - ela dizia - a mesma merda só que mais educada.

- Mais britânica, você diz - Antonio salientou.

Daniel olhava para um ponto fixo na mesa, perdido em seus pensamentos mais distantes. As pálpebras pesavam um pouco por conta do álcool, mas ele continuava lúcido e ciente.

- Só conheci o preconceito de verdade fora de casa - divagou, soltando um riso suave - eu tive um lar muito acolhedor, e quando me assumi, minha mãe disse que já sabia... Ela tinha notado como eu tratava meu primo de uma maneira especial, quase apaixonada quando estávamos juntos, mas também como eu parecia gostar verdadeiramente das minhas namoradas.

- Você ficou com esse primo? - o italiano perguntou.

- Sim - um gole na cerveja e acendeu um cigarro - meu primeiro beijo num garoto.

- Minha família nunca aceitou... - Antonio confessou entre um trago e outro num tom calmo, havia afastado a cadeira para cruzar as pernas a fim de ficar mais à vontade - Não sei se eles sabem, eu nunca contei, mas nunca escondi. O fato é que abraçar e beijar na Itália é comum até para os homens, então se eu faço isso mesmo que no intuito de mostrar o que eu gosto, dificilmente vão notar. E eu certamente não vou reunir a família pra falar do assunto, então se um dia descobrirem tá descoberto.

Ele era cortante. Tão cortante que quando dava um veredito, se tornava palavra final. Mira pegou o cigarro dos lábios dele apenas para dar um trago e roubar um beijo.

- Eu acho que meus pais esperam um dia eu chegar com uma namorada em casa, mas não acho que isso vá acontecer... - disse ela - Gosto de mulheres e me sinto atraída por elas, mas por alguma razão, nunca consegui entrar num relacionamento longo com uma. E não é por não querer, é que simplesmente não acontece.

- Não deixa de ser bissexualidade - Daniel apontou - uma pessoa pode entrar ou não entrar num relacionamento com determinado gênero por diversos motivos, motivos esses que às vezes nem são claros ainda.

- Eu digo isso sempre a ela - a voz do outro rapaz estava ficando rouca e cada vez mais agradável.

Mira sorriu para si mesma, elevando o olhar para os rapazes. Estendeu-se sobre a mesa a fim de pegar o cigarro que estava nos lábios de Daniel e o tragou com gosto sem tirar os olhos castanhos dos dele.

- Bem, de qualquer forma, no momento meus interesses são outros.

- Interesses no plural, mi amore? - perguntou Antonio que já parecia saber a resposta.

Ao invés de verbalizar, a moça apenas piscou para o namorado, levantando-se da mesa.

- Já está escuro e o bar está começando a encher, vamos pra outro lugar?

Pincéis e AmoresOnde histórias criam vida. Descubra agora