Tombo

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A primeira semana até que foi suportável para Ana, ela conseguiu passá-la inteira dentro do apartamento, sem descer para absolutamente nada.

Tinha focado em tentar traçar novos projetos e colocar no papel novas ideias. Pensou que, ainda que não tivesse qualquer projeção de quando poderia voltar a colocar em prática seus shows, quanto mais ideias ela tivesse, maior seria a chance de resultar algo positivo ao final daquele confinamento.

Limitou o contato com seu público, porém. Não teve muito cabeça para aparecer nos stories e julgou que melhor ela faria se mantivesse seu olhar apreensivo e angustiado fora do foco. Tinha total noção do quanto influenciava seus seguidores e, sendo assim, não queria passar nenhuma energia ruim naqueles dias tão difíceis.

Naquela quarta-feira, porém, ela tinha acordado mais disposta e, aproveitando o impulso, desceu para ir até o mercado e comprar mais pães, frios, frutas e demais produtos perecíveis que já não tinha no estoque.

Durante o processo inteiro ela se manteve reflexiva.
Pensou no quanto odiava essa rotina na antiga vida que todos nós vivíamos, costumava delegar todas essas funções aos seus assistentes e sua mãe, quando ela estava por ali com ela.

Aliás, sua mãe... Desde março não via Dona Michele e nem sua irmã Antonella, e quanta saudade ela sentia!

Mas o fato é que sem ninguém, a rotina só competia a ela mesma e ela não podia estar gostando mais de fazer aquilo. Sair para ir ao mercado tinha sido o ápice de sua existência nos últimos dias, e eram esses os novos tempos que vivíamos. Só restava aceitar.

Voltando para casa, seu celular tocou. Parou um instante na rua, colocou as sacolas no chão para pegar o fone, colocou-o no ouvido e atendeu, bastante emocionada.

A: EDUARDA BERTELLIIII! - o tipo Ana Flávia de
"emocionada".

D: Oi, Ana! Tudo bem?

A: Duda! Que coisa boa falar com você... - e era tão genuíno - Tudo bem, sim, e você?

D: Tentando sobreviver ao tédio e ao vírus, né? - Suspirou - Mas vem cá, tenho visto que você anda ausente das redes sociais, estranhei e por isso resolvi te ligar...

A: Ah, miga... - suspirou de volta - Ainda tô falhando miseravelmente em aceitar toda essa mudança de vida, então tô quietinha na minha, mas é só um tempinho. Hoje mesmo, acordei ótima, tô até voltando do mercado agora, veja só!

D: Que maravilha! E nem são duas horas da tarde ainda, madrugou! - Debochou.

A: Palhaça você, né, Eduarda! - Fingiu um tom ofendido - Mas vem cá? Onde você está? Na casa dos seus pais ou no interior?

D: Queria! - Fez uma voz de dengo - Mas não...
Fiquei presa em São Paulo mesmo.

A: Ah, MENTIRA! - O tom animado já colocou a amiga em estado de alerta, sabia o que viria - Poxa, nem pra gente ficar confinadas juntinha, porque vc não vem pra cá?

Eduarda gargalhou.

D: Você é IN-COR-RI-GÍ-VEL, Ana Flávia Castela! E muito previsível também - Fez uma voz sarcástica - Mas não, é lockdown, vamos ficar cada uma na sua casinha, pare de ser teimosa.

A: Isso é... - Gargalhou - Sua chata! Eu nem... - Engasgou na conclusão da frase.

D: Ana? - Duda percebeu, tentou retomar a atenção, mas não foi capaz nos próximos segundos.

Segundos nos quais, ao colocar o primeiro pé na faixa de pedestres para atravessar a rua, Ana percebeu flutuando na direção oposta a figura alta, o cabelo dourado ressaltado pelos discretos raios de sol daquela tarde e, enfim, a voz que sempre lhe perturbaria:

Cinco Dias (MIOTELA)Onde histórias criam vida. Descubra agora