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Toda boa história se inicia com uns goles de café junto à fumaça de um cigarro. Nos interiores deste Brasilzão, já se sabe que estas são as principais testemunhas de uma boa fofoca. A cadeira de plástico no meio da calçada, o cachorro caramelo deitado ao chão e uma senhora ranzinza que acorda espontaneamente seis da manhã a debochar da juventude preguiçosa – que nada pode fazer além abaixar suas calças e curvar suas bundas para o capitalismo selvagem. Ah, minha terrinha... Lar de sanguinários orgulhosos, que se preocupam até o último minuto em gozar da honestidade que cada vez mais se torna escassa.

Moro num apartamento pequeno, num bairro pequeno, com um aluguel que violentamente não segue a mesma lógica. Mas não posso reclamar; trinta metros quadrados de solidão, que por vezes se traduzem em trinta metros quadrados de paz. As embalagens de lasanha e os potes de macarrão instantâneo são o contraste do adolescente recém chegado neste mundo de adultos, que tem como seu maior luxo a pizza dominical e a dose de vodca cara na sexta-feira pós-trabalho.

A janela me proporciona uma bela vista, que por vezes é alívio de minha própria cela. Dias nublados são comuns nesta época do ano em que todos se amedrontam não só com a criminalidade que assola as ruas, mas também com o temporal que sempre ameaça a chegada. "Você é feito de açúcar, porra?", questiona minha vizinha Márcia ao seu marido que se recusa a ir à mercearia em detrimento da chuva. Vivem brigando. Às vezes por tudo, às vezes por nada.

Enquanto uns são ensopados pelo perpassar célere dos carros sobre as poças de lama, outros aproveitam o tempo molhado para estacionar seus automóveis na calçada a fim de driblar o custo de um lava-jato. Cada um lida de um jeito.

Odeio acordar cedo, odeio pegar ônibus. Alguns diriam que odeio a pobreza, mas em meio aos meus piores dias costumo romantizá-la em meus diários. Afinal, rico é tudo igual. Somente o Fodido que sempre tem uma história pra contar – seja num assento ao seu lado no coletivo ou num boteco de esquina qualquer. O que seria da vida sem uma tragicomédia nos bolsos, não é mesmo?

Se a rotina é minha ferida, o álcool é meu curativo. Sete horas da manhã e impossível não levar consigo um cantil no bolso. As balas de morango servem para disfarçar o cheiro que somente o trocador percebe. Meu real confessionário.

Chego no trabalho quinze minutos atrasado – pra variar – e meu chefe ameaça pela milésima vez minha demissão enquanto o discurso moralista paira sobre o ar. Escuto-o com cautela, do mesmo modo que fazia com minha professora de matemática da oitava série. Eu reprovei na matéria dela naquele ano.

Sento-me na cadeira e olho o tempo passar. O relógio parece rir da minha cara. Todo mundo parece rir da minha cara. O único entretenimento que ainda me surge é o desajustado do estagiário mexendo loucamente na impressora. O moleque tem a incrível capacidade de tornar uma simples tirada de cópia numa viagem ao centro da terra.

Em momentos como esses costumo ser prestativo com quem se encontra numa situação mais ferrada que eu, mas como hoje é segunda-feira e estou de ressaca, julgo que seja melhor ver o mundo explodindo diante dos meus olhos. Em outras palavras, estou na nulidade que só um dia como esses pode me proporcionar.

Tento fingir normalidade na execução de minhas tarefas, porém sou traído pelo meu semblante. A enxaqueca me abate mais do que o contracheque barato, e os descontos que minhas faltas resultam só piora tudo. Costumo avaliar um bom inicio de mês da seguinte forma; se houver possibilidade real de fartura, compro uma garrafa de Absolut e uma dúzia de cervejas alemãs para o meu contento. Porém, se os dias derem pistas de que a pobreza me perseguirá, levo dois ou mais vinhos baratos para casa e torço para que durem além de três dias. Meu cuidado é tamanho que esse ritual se dá antes mesmo do pagamento das contas "convencionais". Fazer o quê? Esse é o único momento que me sinto verdadeiramente livre. Não porque de fato seja, mas pela cegueira e ignorância que eu mesmo deixo me jogar com o ardor na garganta.

Eu trabalho numa gráfica, caso queira saber. Basicamente sou o responsável pela produção de cartões, daqueles que você entrega em aniversários de namoro ou em festas toscas de fim de ano. Eu sei, isso parece bastante obsoleto, mas acredite, em pleno século vinte e um e ainda existem otários por aí que aderem aos clichês de mensagens curtas e carentes de qualquer significado.

Por vezes, me sinto como um hipócrita por trabalhar num ambiente que odeio e fazendo atividades que condeno, mas posso mesmo me dar ao luxo de não vender meus ideais em troca de um teto e de um prato de comida? Acho que não.

Pra piorar, sou eu quem escrevo as mensagens. Sinto-me tão limitado nesse entorno que o mínimo de esforço intelectual que faço parece ser o apogeu da genialidade pra essa gente. Entretanto, não sou eu o gênio. Estúpido mesmo é aquele que não tem mais do que dois neurônios pra formular uma frase de titia do Whatsapp.

"Que neste Natal, a alegria seja tão contagiante quanto a risada do tio do pavê.". Sério, alguém me dá logo um tiro na cara. Pra piorar, isso vende, o que naturalmente faz com que eu tenha algum tipo de valor dentro da empresa, mesmo com meu jeito descuidado e arrogante ameaçando constantemente minha permanência. Frente a isso me surge a dúvida, uma eventual demissão seria uma tragédia ou uma bênção? Fica o questionamento.

O MisantropoOnde histórias criam vida. Descubra agora