2- Pilhas

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P.O.V Amélia

Desde que me entendo por gente,sempre fui uma menina muito indecisa e desatenta,mas também sempre me esforcei ao máximo pra compensa minha falta de foco. Aos 10 anos de idade,fui diagnosticada com TDAH severo. 6 anos,72 meses,e 2191 dias depois,eu criei uma rotina fielmente organizada para viver de forma funcional com meu cérebro. Levantei da minha cama exatamente as 6:34 da manhã e possuía aproximadamente uma hora para me aprontar e esperar o ônibus da escola,peguei meu celular já carregado e comecei a checar as notificações enquanto ia na direção da minha cômoda,onde meu uniforme estava dobrado e pronto pra uso.Obrigada,mãe.

Me vesti com o uniforme de saia cinza e blusa branca em gola V,com uma pequena gravata borboleta também cinza que dava exatamente 0% de charme ao meu loop. Amarrei meus cabelos em um coque totalmente preguiçoso, mas como meus cachos estavam levemente cheios,até que havia ficado bonito(totalmente por sorte,claro.)

-Mia,seu café da manhã já está na mesa! Desça pra comer antes que se atrase - escuto minha mãe gritar de forma mandona,mas levemente gentil,me fazendo sorrir de canto.
Calço meu tênis preferido,um azul claro que disputava espaço com desenhos de estrelas  brancas sobre ele,pego minha mochila e meu telefone e desço quase que de imediato,apenas para encontrar minha mãe colocando algumas pastas em sua bolsa de couro preta.
-Hoje eu vou chegar um pouco mais tarde,filha. -ela suspira ao deixar uma pasta cair e posso ver uma mecha escapando de seu rabo de cavalo,a qual ela faz questão de ajeitar antes de pegar o documento- Tenho uma reunião importante pra apresentar minha nova ideia de rótulo,se gostarem,nós finalmente poderemos reformar seu quarto! - o sorriso animado apareceu em seu rosto,me fazendo sorrir com ela. Eu amava o quanto ela se esforçava pra me ver feliz,e era recíproco. Afinal,sempre fomos só nós duas.
-Eu sei que eles vão gostar,mamãe,seriam loucos se não vissem o quanto você é criativa.-me sento pegando minha tigela e a enchendo com cereal,quando sinto um beijo em minha testa - Pode deixar que o jantar está por minha conta.
-Parece que teremos macarrão com Bacon de novo - ela ri e eu a acompanho - Te amo,meu tesouro. Até mais tarde

Ela pega suas chaves em cima do balcão e de repente  a casa fica silenciosa. Quieta demais. Termino eu café da manhã e escovo meus dentes,terminando de dar os toques finais bem a tempo de ouvir a buzina do ônibus lá fora. Time perfeito
Entro no ônibus sendo agraciada por quase todos os barulhos que adolescentes são capazes de fazer. A escola sempre foi um desafio pra mim,tantas matérias,coisas pra fazer e pessoas para interagir,costumava ser um inferno até o dia que eu a conheci. Quieta,retraída,quase que invisível quando a professora disse seu nome ao apresenta-la para toda a classe. Tínhamos 14 anos,a idade em que o rosto já está repleto de espinhas e a maioria está perdendo o BV em alguma sala vazia na escola.
Seu nome era Sarah,e apenas o nome era comum nela. Nós costumávamos conversar sobre tudo,galáxias,política,livros,músicas,religiões,tudo que os jovens evitam fielmente. Ela era minha confidente,até o dia em que ela mudou,começou a se afastar cada vez mais de todos que nós conheciamos,não atendia minhas ligações ou respondia minhas mensagens.  Eu achei que era apenas uma fase,mas pelo visto não,já fazem 3 dias que ela não aparece na escola.
Encaro o contato dela brilhando em minha tela e respiro fundo,perdendo a coragem para clicar em seu nome. Talvez outra hora.

...

O dia se passou arrastando como todos os outros,como se tivesse 10 horas a mais do que o normal. Eu havia chegado em casa fazia algumas horas, estava deitada no sofá com minha mochila quando uma sensação horrivelmente estranha me atingiu. Era como uma crise de ansiedade,só que o desespero que eu sentia era muito pior! Me sentei no sofá colocando uma mão sobre meu peito,sentindo meu coração espancar a caixa torácica, e a outra mão pegar automaticamente meu celular.
Será que eu estou infartando? Jovens de 16 anos infartam? Acho melhor chamar uma ambulância! Tentei regular minha respiração enquanto abria meus contatos,mas ao abrir,vi o nome dela brilhando novamente como havia brilhado mais cedo. Ligue pra ela,a voz no fundo da minha cabeça murmurava, ligue pra ela. Resmunguei meio contrariada e cliquei no contato ouvindo a ligação tentar conectar. Chamou uma vez,duas vezes,t..caixa postal. Ela desligou,eu sabia que ela faria isso,ela faz isso desde o dia em que tudo começou. Talvez eu esteja me exaltando? Ela está bem,não precisa de mim,ou teria atendido,né?!

resposta errada

Tentei conter a sensação por alguns minutos e,ao me sentir um pouco melhor,liguei a televisão por puro costume enquanto tentava me convencer de que aquilo era uma crise e de que eu poderia controlar,e ela cumpriu sua função de me distrair,até que o programa que eu assistia foi interrompido pelo jornal, que mostrou imagens de um acidente com um caminhão e uma cafeteria no centro, que estava totalmente destruída. Aquilo fez meus olhos se encherem de lágrimas e eu não soube dizer o porquê até começarem a mostrar as vítimas do acidente.
Eu vi a foto. Aquela foto.
Era ela

Foram poucos os momentos da minha vida em que senti o controle fugir por minhas mãos. No dia em que meu pai foi embora,eu tinha 6 anos de idade e já entendia mais do que deveria do mundo, entendia porque meus pais mal conseguiam pagar o aluguel,e porque discutiam até tarde.
Tive uma infância bem complicada,com uma mãe que fazia demais e um pai que fazia de menos,então acabei ficando sozinha a maior parte do tempo. Minha mãe trabalhava em turnos duplos  quase todos os dias para poder nos manter e manter a casa,enquanto meu pai se mantinha empenhado em ficar fora da realidade. No dia do meu aniversário eu o vi surtar,jurando que eu era um monstro na sua frente e tentando me atacar,claro que tudo isso sobre efeito de drogas que não faço questão de lembrar o nome agora. Naquele dia minha mãe o fez embora,quando percebeu que ele representava um grande risco pra nós..Sei que deveríamos te-lo ajudado,procurado uma clínica ou algo do tipo,mas como mal podíamos pagar pelo que comíamos e ele se recusava a aceitar esse tipo de ajuda,minha mãe simplesmente desistiu.
Eu gostava dele,acima de tudo era meu pai. Era ele quem me ajudava quando eu tinha dificuldade pra decidir qual sapato usar,foi ele quem me apresentou os desenhos que mais gosto,e ele quem me ensinou a dançar. Nós dançavamos na sala quando ainda éramos uma família feliz,quando as drogas não eram um problema tão evidente,quando isso não havia engolido sua alma.
No dia em que ele foi embora,eu conheci o desespero de pensar que nunca mais veria alguém na vida. Eu me escondi debaixo da cama e chorei por horas,meu pequeno coração acelerado, a vontade de ir pro colo dele,mesmo ele tendo tentado me agredir minutos atrás. A parte mais dolorosa foi a ficha caindo ao longo do tempo,que ele não voltaria mais.
Me encontro embaixo da mesma cama de solteira,da mesma casa em que eu e minha mãe ainda moramos,mas dessa vez meu choro não era o mesmo de quando meu pai foi embora,de quando meu cachorrinho morreu,ou de quando eu quebrei meu braço no futebol. Não,esse era muito diferente,as frases ainda ecoam na minha cabeça,a voz da jornalista que eu havia ouvido segundos atrás.

"Um acidente ocorreu hoje às 16 da tarde em uma das avenidas mais movimentadas da cidade! Um carro derrapou por conta da chuva e atingiu um caminhão que carregava carne,que por sua vez perdeu o controle e se chocou contra a Cafeteria Sweet and Hot. Até agora tivemos a confirmação de 3 vítimas,sendo elas a faxineira Judith James,o motorista Alex Hivera e a estudante Sarah Morris, que se encontrava na frente da loja. As autoridades estão no local..

Sarah Morris
Sarah..

Não era ela,né? Não tinha como ser..não tinha.

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